ARTIGOS

De pernilongos

Adalberto Nascimento

Na época em que morei no CRUSP - Conjunto Residencial da USP -, uma das coisas que mais atazanava as pessoas era a nuvem de pernilongos que, em determinadas ocasiões, invadia a Cidade Universitária. Naquele tempo, o rio Pinheiros ainda estava no estado líquido e as poucas várzeas então existentes serviam de criadouros para muitos insetos.
Mas eram os pernilongos os que mais importunavam os moradores do CRUSP. Não tanto pelas picadas para sugarem nosso sangue, mas por causa do irritante zumbido que faziam.

As picadas são efetuadas pelas fêmeas (as "pernilongas" picavam estudantes e "estudantas"). As fêmeas dos pernilongos são verdadeiros vampiros. Os machos se alimentam de açúcares presentes no néctar e na seiva das plantas. Mesmo assim, com uma dieta vegetal, eles vivem bem menos do que as fêmeas - de 8 a 9 dias -, enquanto que elas (sempre elas) duram cerca de um mês. Portanto, como entre os humanos, viúvas abundam.

Os pernilongos gostam do calor. Quem durante a infância frequentou Mongaguá constatou isso "in extremis", principalmente à noite. Esses monstrinhos, tal como a maioria dos insetos, têm os olhos formados por milhares de lentes minúsculas que lhes permitem visão noturna privilegiada.

As fêmeas, então, têm nos lábios uma agulha retrátil letal que serve para perfurar a pele de suas vítimas. Aquela coceira que temos depois de uma picada advém de reações alérgicas às substâncias anestésicas e anticoagulantes da saliva das malvadas. Substâncias anestésicas para, num primeiro instante, nem sentirmos a picada, e anticoagulantes para facilitar a sucção do sangue. São bichos, digamos, sem coração. Na verdade, o coração do pernilongo é integrado a um sistema em que a hemolinfa circula pelo corpo todo. Um único canal atravessa o corpo, sendo que no final divide-se em câmaras que se contraem para bombear a hemolinfa. O sistema digestivo do pernilongo é um duto da boca ao ânus - de cabo a rabo, como falamos. Por isso eles são delgados e nunca precisarão da tal operação para a redução de estômago.

No reto, 90% da água das fezes dos pernilongos é reabsorvida, para evitar a desidratação quando o ambiente se tornar muito seco.
Depois desse papo anatômico, vamos falar do que nos irrita - o zumbido desses bichos que nos obriga a estapear partes do nosso corpo ou a batermos palmas no vazio, na direção do barulho.
Os tais zumbidos fazem parte do ritual do cortejo para o acasalamento de pernilongos. O barulho provém da vibração das asas desses insetos. Assim, podemos dizer que os pernilongos fazem sexo com intensa vibração.

Cientistas dedicados a estudos de insetos descobriram que normalmente os pernilongos vibram suas asas a 600 hertz (600 ciclos por segundo). As fêmeas, mais comedidas, o fazem a 400 hertz. Quando se encontram bem próximos, passam a zunir em uníssono a 1200 hertz e acasalam. Essa ode ao amor só acontece quando são de sexos opostos. É quando acontece o ápice da nossa raiva pelo intenso zumbido sexual. Eles, numa farra total; nós, insones e raivosos. O jeito é imaginar um antiviagra pra pernilongo.
Assim que a relação termina, a fêmea parte em busca de sangue para irrigar os ovários e produzir até 200 ovos por ninhada.
Esse papo todo me trouxe à memória um fato do tempo de faculdade. O CRUSP volta e meia abrigava estudantes estrangeiros. Certa ocasião, na fila do bandejão do jantar, eu e meus colegas de apartamento conhecemos dois franceses que falavam espanhol. Recém-chegados, disseram ter sido informados de que lá havia uns bichos estranhos chamados pernilongos.

Um dos meus colegas, um gozador de Jundiaí que cursava Engenharia Naval, fez em portunhol uma horripilante descrição do bicho. Segundo ele, tratava-se de um inseto enorme mortífero-vampiresco e que sugava o sangue pela jugular dos desavisados. Por isso era recomendável dormir com um lenço enrolado no pescoço para não sofrer risco de morte.

Os dois franceses ficaram com os olhos arregalados, procurando ver alguém portando algum lenço. Como não havia ninguém daquele jeito, falamos que os que tinham sobrevivido já estavam imunizados e até causavam repúdio àqueles monstrinhos.
Depois do jantar, a dupla foi rapidinho para o apartamento no qual estava alojada. Provavelmente dormiram enrolados em cobertores em noite muito quente.

A nossa odisseia com os pernilongos durou pouco. No final de 68, todos os moradores do CRUSP foram expulsos pelo regime militar da ditadura vigente. Eu fui morar na Casa do Politécnico, no Bom Retiro, deixando os pernilongos uspianos à míngua.
Na Casa, não com tanta intensidade, ocorria outro tipo de problema - as pulgas. Mas essa já é outra história.
Adalberto Nascimento é engenheiro e escreve a cada duas semanas neste espaço, sempre aos domingos ([email protected]).