Destaque em 'Amor à vida', Elizabeth Savalla se mantém a serviço da arte e distante de qualquer afetação
Geraldo Bessa - TV Press
Elizabeth Savalla é articulada e sem papas na língua. Não é à toa que seus maiores trunfos morem em sua independência artística e na diversidade dos personagens que acumula ao longo da carreira. No ar em Amor à vida, sua 21ª novela na Globo, Savalla acredita que tudo só foi possível a partir de sua predileção por um caminho mais complexo e artístico. "Me acho feia e torta. E se você é atriz e não é bonita, é preciso estudar, pesquisar, ler muito. Sou do tipo sem vaidades e que está sempre a serviço do papel", assume, com modéstia, a atriz de traços finos e elegantes. Intérprete da despudorada Márcia, ou a ex-chacrete Tetê Parachoque-Paralama , aos 58 anos, Savalla se mostra distante da crise de personagens que tantas outras atrizes de sua geração reclamam e se diz surpreendida com o tom tragicômico do papel. "É preciso equilibrar para ela não ficar histriônica e exagerada. Márcia é a típica batalhadora, que ainda espera que algo de bom aconteça em sua vida. É um tipo que pode ser facilmente encontrado nas ruas", valoriza.
O trabalho na atual novela das nove é mais um encontro da atriz paulistana com o texto de Walcyr Carrasco, autor mais recorrente em sua trajetória recente, responsável por novelas como Chocolate com pimenta, de 2003, e Morde & assopra, de 2011. "Ele escreve especialmente para mim. Isso faz diferença", assume. A afinidade com Walcyr surgiu da fidelidade artística que a atriz mantinha com o falecido Walter Avancini, o nome por trás de sua estreia em novelas, no papel de Malvina na mítica primeira versão de Gabriela, de 1975. E que a dirigiu pela última vez em A padroeira, novela também assinada por Walcyr e exibida em 2001. "Foi complicado perder o Avancini. Eu e Walcyr ficamos órfãos e acabamos nos aproximando. Devo muito a ele. Afinal, posso fazer quantas personagens for, mas assim como a novela Gabriela, a Malvina é aquele tipo que não dá para esquecer", emociona-se.
P - Este ano, você completa 38 anos de carreira. O que a leva a aceitar novos trabalhos e personagens?
R - Primeiro, o salário (risos). Mantenho uma boa relação com a empresa e recebo em troca os bons personagens que me são confiados. Funciono dessa forma e é uma justa relação de troca. Nunca trabalhei em nenhuma outra emissora e sou contratada da casa, ininterruptamente, desde Gabriela (1975). Além disso, é uma novela do Walcyr, que está estreando no horário das nove. Eu não conseguiria recusar.
P - Amor à vida é seu oitavo trabalho consecutivo sob o texto do Walcyr. Como você encara essa ligação entre atriz e autor?
R - Eu gosto de trabalhar com quem me oferece material necessário para a minha atuação. E o Walcyr faz isso. O conheci através do Walter Avancini, que trabalhou com ele na Manchete e o trouxe para a Globo. Em A padroeira, ficamos mais próximos por causa do Avancini, que já estava muito doente quando dirigiu a novela e faleceu com a trama no ar. A partir daí, Walcyr me chama para tudo que escreve, de Sítio do pica pau amarelo até o folhetim das nove. E me oferece tipos variados e instigantes. Somos da "escola de fidelidade" do Avancini. É por isso que a gente não se larga.
P - Você estava escalada para o remake de Gabriela, também assinado pelo Walcyr, exibido no ano passado, e acabou não participando. O que aconteceu?
R - Liguei para o Walcyr e pedi para não fazer a novela. O papel foi tão marcante na versão original que eu achei que não tinha sentido participar desse remake. Gabriela foi importantíssima para a época. Com uma linguagem única, a trama abordava o momento político do país em plena ditadura militar. O clima nos bastidores era de subversão. Afinal, 99% dos atores eram de esquerda naquele momento e ser artista era fazer de seu trabalho um palanque. A gente não se tornava ator para ser apenas capa de revista.
P - Como assim?
R - A gente tinha base artística e social. Minha geração não estava preocupada em ter iphone, a gente queria saber se o povo tinha o que comer. Ser ator era acreditar em uma crença de que podíamos mudar o país. E dentro do contexto, travestida de "baianês", minha personagem, a Malvina, era uma grande revolucionária, à frente de seu tempo e teve muita repercussão.
P - Mesmo repetindo o autor, os tipos que você interpreta fogem da mesmice. É uma exigência sua ou isso, simplesmente, acontece?
R - É um pouco de cada coisa. O autor cria o papel. E respeitando os limites artísticos e do bom senso, eu apresento no ar a minha visão daquele tipo. Sou detalhista, mudo o cabelo, arquiteto um gestual, vou diferenciando a personagem atual de tudo que já vivi na televisão. Isso dá muito trabalho. Poderia muito bem ficar no piloto automático, mas não consigo. Por exemplo, para Amor à vida, eu queria muito que a Márcia fosse "crespa". Afinal, é preciso parar com essa ditadura da chapinha! Vamos liberar os cachos! Só que aí eu me ferrei (risos).
P - Por quê?
R - O meu cabelo é muito liso. Então, para ficar com o cabelo da Márcia, eu sofro muito e estrago os meus fios. Todos os dias eu chego uma hora e meia antes da gravação para poder montar o visual da personagem. Mas vale a pena. Não quero ser repetitiva, a atriz que tem sempre a mesma cara. Então, emagreço, engordo, tinjo e corto meu cabelo, vou experimentando a favor do papel.
P - Você engordou um pouco para dar vida à Márcia. Por que achou que a personagem deveria ter esse corpo?
R - Foi uma junção de fatores. No ano passado, tive uma crise horrível de tireoide, sofri com a menopausa e meu pai faleceu. Foi um ano complicado. Para espairecer, viajei com minha mãe para a Europa. Quando voltei, comecei a fazer uma dieta. Mas, ao saber mais detalhes sobre a personagem, que ela seria uma ex-chacrete, que passaria por situações complicadas, mas sem perder o humor, pensei: "esse personagem não precisa de dieta". É uma mulher que já teve um corpo escultural e quase toda mulher quando envelhece engorda. É normal ganhar uns quilos e é preciso acabar com esse bullying televisivo (risos).
P - Como assim?
R - Esses preconceitos bobos. É preciso aceitar as gordinhas, as crespas e qualquer outro tipo feminino que seja diferente do que a sociedade afirma ser o ideal. O Brasil é um país muito diverso para que a gente se limite. A Márcia merecia ser uma mulher mais volumosa, real. Para mim, foi ótimo, me livrei de uma dieta.
P - Ao lado da Valdirene, de Tatá Werneck, sua personagem é uma das mais populares de Amor à vida. A repercussão desse tipo de papel é diferente nas ruas?
R - Acho que é uma questão de horário também. A Márcia é uma pessoa mais humilde, que batalha e sonha com dias melhores, mas existe a magia do horário das nove, onde um personagem médio pode dar uma visibilidade imensa ao ator. Por exemplo, quer personagem mais maravilhoso do que a Jezebel (Chocolate com pimenta, 2003)? Se tivesse sido às nove da noite, ela faria ainda mais sucesso.
P - O peso das personagens e o horário das novelas são prioridades na hora de você acertar sua participação nas tramas?
R - Nunca tive essa frescura. Tanto que, a convite do Walcyr, fiz Sítio do pica pau amarelo, que ia ao ar às 10 horas da manhã. Mas não se pode negar que são produtos de abrangências diferentes. Mas o fato de estar na novela das nove não quer dizer muita coisa para mim. O que importa é fazer uma personagem como a Márcia, que tem um pé no real, vende cachorro-quente, foi famosa, é ex-prostituta. Ou seja, uma grande personagem.
P - Um grupo de ex-chacretes ficou extremamente incomodado com a abordagem feita sobre a função delas em Amor à vida. Esse descontentamento chegou até você?
R - Eu fiquei sabendo e achei uma bobagem. Até porque é ficção. Todo gay é mau que nem o Félix (Mateus Solano)? Toda secretária seduz o patrão? Dentro dessa área segura e distante da realidade, achei o fato de a Márcia ser uma ex-chacrete, além de uma ousadia, uma homenagem do autor ao Chacrinha. A minha atuação e o trabalho de construção da personagem também seguem nessa mesma linha da homenagem e resgate. Tanto é que tive ajuda da mais famosa ex-assistente de palco do Chacrinha, a Rita Cadillac.
P - A Rita chegou a, inclusive, participar de algumas cenas de Amor à vida. Como foi esse contato com ela e qual foi a coisa mais curiosa que você descobriu do universo das ex-chacretes?
R - Logo que a gente começou a conversar, a Rita me disse uma frase que me marcou e impressionou muito: "Cada um luta com as armas que tem. E em toda a minha vida, a única arma que eu aprendi a ter foi a sedução". Ouvir isso foi o ponto de partida para minha personagem. Eu tive algumas armas na vida. Uma família, pais que lutaram por mim, que me motivaram. Pude estudar, ganhar estofo artístico e crescer como atriz. Ela, assim como a Márcia, não teve essa oportunidade. Então, não se pode julgar nada. Cada qual com seus motivos.
P - Embora tenha seus momentos dramáticos, Márcia também abusa de boas doses de comédia. Como você equilibra essas nuances do papel?
R - É uma linha muito tênue. Mas, até no lado cômico dela, existe um ponto trágico. Ela quer muito arranjar um marido rico para a filha, porque é dessa forma que acha que poderia ter se tornado rica e sair da periferia. Tento passar verdade em todas as cenas, sejam elas tristes ou alegres. É um tipo muito verossímil e merece esse empenho da minha parte.
Força cênica
A intensa formação teatral de Elizabeth Savalla sempre foi a força motriz de seus projetos. É por isso que, paralelamente ao trabalho na tevê, a atriz investe na formação de público de teatro. "Me apresentei em muitas praças e comunidades. Viajei o Brasil todo, fui a cidades que não tinham nem teatro. Me orgulho muito dessa iniciativa. Basta um microfone, figurino, luz e, principalmente, público", empolga-se. Na estrada, Savalla garante ter passado momentos de muita emoção ao constatar a receptividade de pessoas que nunca sequer tinham tido contato com os palcos, apresentando espetáculos como É, de Millôr Fernandes, e Friziléia, de Camilo Átilla marido da atriz. "Fui muito beijada e abraçada nos lugares por onde passei", lembra, aos risos.
Mesmo comprometida com as gravações de Amor à vida, Savalla já começa a arquitetar sua volta aos palcos em mais um monólogo que vai passear da mesma forma pelos palcos mais famosos do país, além de prestigiar também o público de cidades mais humildes e distantes. "Não consigo ficar quieta. Eu e meu marido estamos procurando um texto, mas estamos na fase das ideias ainda. Quero voltar nos municípios que já visitei e descobrir novos", planeja.
* Amor à vida, Globo, segunda a sábado, às 21h15