ARTIGOS

A garrafa de Pet 100% reciclada


* Sandro Donnini Mancini

Foi lançado em julho, aparentemente somente para divulgação em redes sociais, um comercial da Ambev em que é comemorado um fato interessante: são nove meses de fabricação e comercialização de garrafas de poli(tereftalato de etileno) ou simplesmente as garrafas PET- feitas totalmente com material reciclado embalando Guaraná Antarctica. No comercial (http://www.youtube.com/watch?v=284-pUq_1lc), uma narração bem humorada diz que qualquer garrafa PET (inclusive de Coca-Cola, a principal concorrente), pode virar uma garrafa PET de guaraná. Segundo balanço da empresa, nesses 9 meses cerca de 120 milhões de garrafas de 2 litros de guaraná, o equivalente a 20% do total, foram transformados em novas garrafas de refrigerante em quatro fábricas localizadas no Rio Grande do Sul, Paraná, Rio de Janeiro e Pernambuco.

Realmente, o anúncio da Ambev trata-se de um avanço. O motivo para isso remete à maneira como o material é reciclado. A forma mais comum de reciclagem de plásticos tradicionais, como o PET, é a partir da fusão, ou seja, deve-se derreter o material. Igualmente, por fusão, se reciclam alumínio e vidro, que também costumam embalar refrigerantes. A diferença entre esses três materiais reside na temperatura de fusão: enquanto o vidro derrete a mais de 1.000oC e o alumínio próximo a 700oC, meros 300oC são necessários para derreter PET. Embora possam ser considerados altos, esses 300oC não garantem que todos os contaminantes que possam fazer mal à saúde (de quem consome o produto que uma embalagem reciclada poderia acondicionar) sejam devidamente eliminados. Já 700oC são suficientes e 1.000oC mais ainda. Logo, é proibido plástico reciclado ter contato direto com alimentos. Porém, a Ambev não está fazendo nada ilegal.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, seguindo uma tendência europeia e norte-americana, aprovou em 2008 uma legislação que dispõe o regulamento para que uma embalagem de PET pós-consumo reciclada possa ter contato direto com alimentos. A legislação especifica a quantidade máxima de contaminantes que possam permanecer na embalagem reciclada sem que estes sejam passados para o alimento. Para conseguir esse número, extremamente baixo (na faixa das partes por bilhão), somente a fusão do PET não resolve. Se resolvesse, desde 2008 haveria essa possibilidade no Brasil.

Com o objetivo de conseguir autorizações nesse sentido, grupos de pesquisa em todo o mundo estudaram várias possibilidades de se conseguir um produto final que passe pelos testes-desafios, que possuem rigorosa metodologia desenvolvida pela Agência Americana de Medicamentos e Alimentos (FDA, na sigla em inglês). Embora cercada de sigilo, a impressão é que a técnica protocolada pela Ambev e aprovada pela Anvisa diz respeito a um procedimento físico, em que uma limpeza muito mais eficiente que a convencional é empregada. Na reciclagem de plásticos, antes da fusão, independente do uso que se espera para o reciclado, é praticamente fundamental que os resíduos sejam triturados e lavados, dada a presença de impurezas (e eventualmente contaminantes associados) que costumam ficar impregnadas nos mais variados tipos de embalagens, inclusive garrafas PET.

A propaganda da Ambev diz que qualquer garrafa de PET pode virar uma garrafa de guaraná, mas sutilmente só coloca embalagens verdes (como a de guaraná) e incolores, bem como não coloca embalagens de óleos vegetais. Provavelmente embalagens de outras cores dificultem a obtenção do verde que os clientes do guaraná estão acostumados e a presença de óleo no tanque de lavagem certamente traz uma dificuldade a mais, pela necessidade de retirada da gordura associada. É sabido que a reciclagem de qualquer material, e em especial de uma garrafa PET visando contato com alimentos, fica tão mais fácil e barata, bem como de melhor qualidade, quanto menos impurezas o resíduo de interesse tiver. Assim, a coleta seletiva é um agente facilitador desse processo.

A fabricação de garrafas PET 100% recicladas para contato direto de alimentos pode aproximar o plástico das latas de alumínio, que apresentam no Brasil taxas de reciclagem incrivelmente próximas a 100%. Para o PET, a reciclagem é pouco superior a 50%, mas estima-se que com a abertura do mercado original, de garrafas de refrigerante, esse número possa subir bastante. Isso contribuiria para a valorização do resíduo ou no mínimo, uma venda bem mais fácil. Em última análise, melhora a vida do catador de material reciclável.

* Sandro Donnini Mancini (www.sorocaba.unesp.br/professor/mancini;[email protected]) é professor da Unesp de Sorocaba (www.sorocaba.unesp.br) para os cursos de graduação em Engenharia Ambiental, Mestrado e Doutorado em Ciência e Tecnologia de Materiais e Mestrado em Engenharia Civil e Ambiental. Escreve a cada duas semanas, às terças-feiras, neste espaço.