CULTURA

Machado de Assis



Avaliar um autor como Machado de Assis é empreitada das mais difíceis. Começa com a fama - merecida - do escritor. A figura de Machado é inquestionável. Os estudos críticos preenchem várias estantes de uma biblioteca. Fica-se com a impressão de que tudo já foi dito. Restaria, então, escrever textos sem pretensão e fortemente carregados de elogios ao grande autor.

A dificuldade prossegue com a amplitude da obra de Machado de Assis. Dos gêneros literários mais conhecidos, ele desempenhou belo papel em pelo menos três: crônica, conto e romance. A leitura cerrada das crônicas revela um autor com agudo senso histórico; ao mesmo tempo, sua arte de camuflar temas espinhosos a partir de alegorias contadas por um narrador sempre simpático exige olho atento do leitor. Trata-se de uma prosa aliciadora. Uma das chaves para se entender Machado é desfazer essa criptografia simpática. Exemplo famoso do comportamento machadiano é a crônica publicada no dia 19 de maio de 1888, apenas seis dias depois da abolição da escravidão. Em vez de colocar todas as cartas na mesa, como faria um Lima Barreto, Machado cria uma narrativa familiar. Soa como escapismo, mas ao leitor atento fica patente uma das mais duras críticas ao sistema que foi base de nossa sociedade e que ainda hoje lança gritos pavorosos em manifestações racistas. Ler as crônicas de Machado é tomar contato com a sociedade do século XIX e com o laboratório do ficcionista.

O ficcionista dos romances e contos. Traçar um esquema geral de seus romances é tarefa menos espinhosa. Até a publicação, em 1881, de Memórias póstumas de Brás Cubas, os romances machadianos eram ensaios do que estava para vir. Narrativas que ainda não haviam conseguido livrar-se da camisa de força da prosa romântica. Se parasse nesses romances de forte cheiro romântico, Machado seria lido muito mais como uma curiosidade histórica. Mais ou menos o que acontece com Joaquim Manuel de Macedo. Tudo muda em 1881: Memórias póstumas de Brás Cubas é dupla ruptura. Ruptura com o que Machado vinha fazendo até então e ruptura com o cenário literário nacional. A segunda ruptura é das mais flagrantes em todos os tempos. Basta ler Brás Cubas e algum outro texto, de outro autor, na mesma época. Brás Cubas nos fascina ainda hoje; o outro texto está mais para relíquia. Dali em diante, acompanhamos a publicação dos grandes romances machadianos, culminando com Dom Casmurro, romance máximo de nossa literatura.

(E aqui começa a implicância do autor desta coluna com algumas apreciações mais comuns da obra de Machado de Assis. Qualquer pessoa minimamente lida já ouviu referências a Memórias póstumas de Brás Cubas ou Dom Casmurro. Em relação ao segundo, sempre surge a polêmica se Capitu traiu ou não Bentinho. Como se o romance se resumisse a isso. Ora, preocupar-se somente com a questão da traição é reduzir o texto ao elemento da peripécia, o que, em se tratando de Machado, é muito empobrecedor. Outro ponto lamentável: mencionar com a boca cheia Brás Cubas e Dom Casmurro e esquecer Quincas Borba, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, três romances de um Machado de Assis em plena forma. Até brinco com os alunos do ensino médio: na lista de obras que a Fuvest e a Unicamp pedem, sempre haverá Machado; alguns anos, Brás Cubas; outros anos, Dom Casmurro. Surpreendente seria se outro romance aparecesse; ou uma coletânea de contos. Neste ano, a lista terá mudanças. Torçamos.)

O Machado de Assis contista sofre com a fama de medalhão da literatura brasileira. Dos muitos contos que escreveu, ouvimos, quase sempre, referências a um punhadinho deles: O espelho, O alienista, A sereníssima república, A cartomante, A causa secreta, Uns braços e Missa do galo. De fato, são contos que merecem figurar em qualquer antologia mais criteriosa. O problema não está nos contos que acabei de mencionar. O problema está no esquecimento de várias outras preciosidades machadianas.

Gosto de dizer que, a cada vez que releio os contos de Machado de Assis, estou praticando uma deliciosa caça ao tesouro. Na verdade, caça aos tesouros. Dia desses, conversando com a Patricia, comentei que meus contos machadianos preferidos vão mudando conforme a minha idade. Na casa dos vinte anos, meus eleitos foram os contos em que Machado carregou no absurdo. Eram os contos de Papéis avulsos (1882): A chinela turca, Uma visita de Alcibíades, O anel de Polícrates, O espelho e O alienista. Alguns anos depois, minha preferência mudou para a safra mais realista: Singular ocorrência, Capítulo dos chapéus, O enfermeiro e Primas de Sapucaia!. Na casa dos trinta anos, houve síntese, com uma leve inclinação para os contos menos vistosos.

Essa última inclinação trouxe a redescoberta de um conto que julgo fundamental: O machete, de 1878, publicado somente na imprensa da época e resgatado pelo grande estudioso John Gledson numa antologia publicada, em dois volumes, pela Companhia das Letras. Machete é outro nome dado ao cavaquinho. O conto pertence àquela linhagem mais contida da prosa machadiana. Tudo ocorre num subúrbio carioca. A personagem principal é um músico que leva a sério sua arte. Seus dias são repletos de reflexões sobre a arte. Quer que o violoncelo, o instrumento que elegeu, seja o veículo para a criação de obras sublimes. Até então, acompanhamos a comovente história de um artista tenaz. Mas com Machado sempre há a outra volta do parafuso. Nosso artista do violoncelo casa-se com uma moça encantadora, que tem apenas um defeito: não compreende a arte do marido. Nos primeiros tempos do casamento, isso não chega a ser um grave problema. Justamente nesse momento Machado dá outra volta no parafuso: entram em cena dois rapazes, estudantes de direito em São Paulo, que por acaso passam perto da janela da casa do músico e ouvem a melodia do violoncelo. Ficam encantados. Um deles, mais entusiasta, torna-se uma espécie de incentivador do músico. O outro, mais acanhado, ficamos sabendo que toca cavaquinho. Os dois amigos passam a frequentar a casa do violoncelista. Numa das visitas, o tocador de cavaquinho é convidado a mostrar sua arte. Modestamente, ele executa algumas músicas populares. A esposa do violoncelista fica encantada. Em pouco tempo, no bairro, a fama do violoncelista é soterrada pela graça do tocador de cavaquinho. Acompanhamos a queda física e moral do músico erudito e o crescimento do músico popular e despretensioso. O conto fecha com a mulher do violoncelista fugindo com o tocador de cavaquinho. O músico erudito enlouquece. Em tom menor, de conversa amena, Machado de Assis criou, com o conto O machete, uma profunda alegoria de um problema que ainda hoje rende discussões ferozes: a separação entre arte popular e arte erudita. Há quem acredite que as fronteiras são bem delimitadas; todavia, a realidade nos mostra que a arte é muito mais cruzamento do que exclusão. Seria exaustivo listar exemplos para sustentar a afirmação. Pensem no jazz, no cinema, na MPB, no rock, na literatura de Guimarães Rosa, de Graciliano Ramos, de Lima Barreto, de Faulkner, de Tolstói. Pensem nas rupturas na obra de Machado de Assis.

No último final de semana, encerrei mais um jogo de caça ao tesouro. Reli Machado. Mudarei de ares nos próximos dias, mas já estou pensando em como será revisitar Machado. Será bom. Daqui alguns anos, provavelmente vou reler este texto e fazer mudanças fundas. Viva a contradição!