Um reduto do samba na Vila Fiori
Maíra Fernandes
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No mesmo endereço e no mesmo canto do bar, sete músicos se reúnem semanalmente há quase oito anos com o mesmo propósito: não deixar o samba morrer. Desde que começaram, em 2007, e de maneira bem informal e despretensiosa, é o samba que tem vez nas vozes que entoam um repertório que apresenta clássicos do samba raiz, mas também abre espaço para composições dos próprios músicos e de outros interessados que comparecem, religiosamente, às segundas-feiras, no Bar do Carlinhos, na Vila Fiori.
É lá, em um ambiente característico dos bares de bairros, cercado de mesas vermelhas de plástico, de bilhar, troféus e menções futebolísticas ao time amador sorocabano Beira Rio e ao Sport Club Corinthians Paulista, que nasceu e sobrevive o projeto batizado de Semente do Samba - berço de compositores, encabeçado pelos músicos: Ricardo Urbano, Ademílson Maranhão, Marcelo Lopes, Gilson Timba, Duzinho, Neto Semente e Nelson Beção, o único palmeirense entre os corintianos.
O projeto, que chega a receber de 100 a 300 pessoas no primeiro dia útil de cada semana, já soma 80 composições de músicos locais ao longo desses anos, e já há a ideia e a vontade de registrá-las em um álbum, ainda sem verba e data para se concretizar. "Estamos pensando nisso e, acho que até o ano que vem, ele (álbum) deverá estar explodindo por aí", adianta Ricardo Urbano, um dos fundadores do projeto, ao lado de Ademílson Maranhão e Barba Marques.
Ricardo é quem conta a história do começo do projeto, uma reunião de amigos e músicos que tocavam na noite e, chegado um tempo, tiveram que dar um "breque" nas atividades. Sentindo falta da música e da noite, resolveram voltar a se reunir. E o Bar do Carlinhos, já um endereço onde Ricardo aparecia para jogar bilhar, passou a ser um ponto de encontro. "Vínhamos de quarta-feira, sentávamos, falávamos de música, tocávamos umas músicas, Adoniran, Cartola, e também umas composições nossas... Nos primeiros encontros tinha um casal, depois, quando vimos, já estava lotado e o projeto foi ganhando força, sem propaganda, sem panfletos... Até hoje eu acho isso muito louco", recorda Ricardo, que não podia supor que o despretensioso encontro pudesse tomar a proporção que tomou, popularizando o bairro já conhecido por ser berço da agremiação vencedora do Carnaval 2014, Estrela da Vila.
Depois de um tempo, resolveram mudar o dia do encontro de quarta-feira para segunda-feira, e o evento deslanchou e se fortaleceu, não apenas como uma ação de militância pela valorização do chamado samba raiz, mas também como espaço para novos compositores do gênero. "Bar também é um retiro cultural", pontua Ricardo, reforçando que o samba autoral não precisa, necessariamente, ser dos integrantes do grupo, mas pode também ter assinatura de outras pessoas que tenham interesse em apresentar suas obras. Para tanto, basta chegar antes do samba começar, às 19h, com a letra impressa para os músicos acompanharem.
Dessa safra, já saíram nomes de compositores como Wellington Pereira, Feijão e Cláudio Silva (do projeto também de samba autoral, Panela do Samba). E novidades não param de acontecer dentro e fora da roda. A mais recente é que Ricardo está concorrendo com duas composições na competição nacional Exposamba, que busca o melhor samba do Brasil. A fase é de voto popular pela internet e o músico está feliz com o reconhecimento. "Ter chegado até aqui já é muita coisa", comemora o defensor do gênero considerado um dos mais brasileiros.
Afinação
Com público cativo todas as segundas-feiras, os músicos, que não abrem mão de tocarem no chamada "cantinho", tiveram que fazer, no ano passado, uma concessão para atender a demanda: incorporar um microfone para não deixar ninguém sem ouvir música. Isso pois, além do espaço do bar, o público ocupa um salão anexo e à frente do estabelecimento. "Quem chegar aqui será bem recebido", garante Marcelo que, desde que passou a integrar o grupo, viu sua produção musical aumentar. "Eu já escrevia alguma coisa (música), mas o Ricardo foi afinando e tem se tornado um aprendizado. Isso aqui virou uma irmandade", destaca Marcelo que, depois de um tempo afastado, não se conteve ao chamado do samba.
Ricardo Urbano aponta que, no decorrer dos anos, o próprio grupo foi afinando a parceria e testando as composições. Desse processo semanal, floresceram muitas canções que, hoje, já são de conhecimento do público mais cativo. "Mesclamos nossas composições com a de nomes conhecidos do samba como Adoniran, Cartola..."
Aliás, mesmo com outras orientações musicais, os músicos contam que não tiveram dúvidas quando começaram a tocar. "Perguntamos: qual a nossa paixão musical? Então fazemos samba até hoje", resume Ricardo.
Outro fundador, Ademílson Maranhão, endossa a intenção do projeto como um incentivador de novos compositores, mas não esconde que a intenção sempre foi a de desenvolver um projeto de musicalização com crianças, que ainda não foi concretizado. "Mesmo assim, o sonho permanece", fala vislumbrando uma ampliação futura.
O benfeitor
Figura importante não apenas para o sucesso do projeto, mas também para a comunidade da Vila Fiori onde reside há mais de 40 anos, o comerciante Carlos Roberto de Carvalho, o Carlinhos, que dá nome ao estabelecimento, é o anfitrião cortês das noites. Além de ter concedido aos músicos o cantinho em que guarda os troféus do time que preside, o Beira Rio, e cancelado as atividades da mesa de bilhar às segundas-feiras, ele é o principal incentivador do grupo e do projeto, desde o início. E sem cobrar a entrada das pessoas.
"Eles chegaram e, devagar, de brincadeira, as coisas foram acontecendo e o projeto crescendo. Eu sempre gostei de samba, tocava no Carnaval, por isso apoiei", recorda o comerciante, que já recebeu, no período de férias de verão, cerca de 300 pessoas em uma única segunda-feira de projeto. "Nunca alteramos nada no bar e as coisas acontecem bem."
Mas não é só a música que merece a atenção e o bom trato de Carlinhos. O comerciante ainda está à frente de outros projetos sociais no bairro, que desenvolve sem um centavo de verba pública, como o de dança, que atende 40 pessoas, e o de futebol, que recebe 130 crianças. Todas essas atividades semanais contam ainda com lanches para os participantes, o que onera o orçamento de Carlinhos em aproximadamente R$ 2 mil mensais. "Meu pagamento é ver gente hoje já formada, gente boa, todas que passaram por esses projetos. E alguns deles, muitas vezes participam só pela merenda", reconhece ele, que prepara uma festança para domingo, Dia das Crianças. "Eu gosto disso."
Serviço
O projeto de samba acontece toda segunda-feira, das 19h às 22h, no bar do Carlinhos, que fica na rua Silva Barros, 226, Vila Fiori. A entrada é gratuita.