CULTURA

Percorrendo Frestas




Felipe Shikama
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No Barracão Cultural, ao lado da Estação Ferroviária, obras audiovisuais convidam os visitantes a refletirem sobre temas abstratos e onipresentes como o silêncio e o tempo. A poucos metros dali, no Museu da Estrada de Ferro Sorocabana, é possível conferir instalações construídas a partir do rearranjo de peças do acervo do próprio museu. Basta atravessar a rua Souza Pereira para chegar ao Palacete Scarpa, onde três videoinstalações da artista argentina Ana Gallardo dividem o espaço com uma série de mosaicos assinados pelo catarinense Bill Lühmann, elaborados a partir de objetos coletados pelas ruas de Sorocaba.
A visitação desses espaços alternativos da Trienal Frestas é gratuita e pode ser feita até 8 de fevereiro de 2015. Apesar da curta distância entre esses três prédios da prefeitura que abrigam obras da Frestas Trienal de Artes, do Sesc Sorocaba (onde está a maior concentração de trabalhos da mostra), o percurso percorrido entre uma obra e outra, no plano das ideias, parece ser imensurável.
A imersão nesse universo artístico situado no coração da cidade já tem atraído os olhares de centenas de alunos, de várias idades, das redes municipal e estadual de ensino. As excursões de grupos escolares começaram na última sexta-feira (24) e até o fim de novembro, quando termina o período letivo, a expectativa do Sesc é de que Frestas receba entre 15 mil a 17 mil visitantes.
Na tarde da última terça-feira, a reportagem do Mais Cruzeiro acompanhou a visita de um grupo de 31 alunos da escola municipal Flávio de Souza Nogueira. "Não precisam ter medo. Aqui não tem certo ou errado. Vocês podem tirar as conclusões que quiserem", explicou às crianças Roberta Fabrício dos Santos, que a exemplo do curador do Frestas, Josué Mattos, prefere trocar o termo "monitora" por outro mais subjetivo: desleitora.
Instantes antes de iniciarem a visita ao Barracão Cultural, outros "combinados" são pactuados com as crianças, como não correr, não tocar nas obras e não comer lanche nas dependências da exposição.
Em seguida, propondo a "desleitura" das obras no olhar das crianças, Roberta provoca, questiona e ouve, sem jamais induzir os pequenos visitantes a "entender" a proposta de cada artista. "Está sendo muito prazeroso para mim ajudar as crianças e os adultos a verem a arte e pensar na sociedade. A arte contemporânea tem algo libertário que instiga e o nosso papel é o de fazer desleituras para a vida e o cotidiano dela", explica, antes de concluir: "Nós estamos aqui apenas para facilitar. A gente entende que ninguém é vazio de conhecimento, por isso que a gente está aqui apenas para propor a desleitura e não dizer o que é ou o que não é."
Com os olhos curiosos voltados para uma vídeo instalação de Julia Kater, composta pela reprodução de cinco microcenas do cotidiano, o estudante Gustavo de Almeida Mendes, 10 anos, começa a descobrir a dimensão que a arte pode representar para o seu universo particular. "Estou achando legal. É a primeira exposição de arte que eu conheço. É muito interessante, porque faz a gente pensar em coisas que antes a gente não pensava", pontua. "Estou vendo coisas diferentes, acho que meu pensamento vai melhorar", acrescenta, antes de especular sobre os significados narrativos da obra O peso morto dos dias perdidos - um gigantesco painel desenhado pelo artista mexicano Bayrol Jiménez em folhas dispostas sobre a parede e o chão.
Ainda no Barracão Cultural, a artista Raquel Stolf convida o público a se submeter a uma desconfortante experiência sensorial. Intitulada Assonâncias de silêncios (sala de escuta), a obra que integra o acervo do Museu de Arte de Santa Catarina é uma cabine com isolamento acústico de 40 decibéis. Lá dentro, o visitante ainda conta com um abafador de ruídos capaz de isolar outros 24 decibéis. "Qual é o ruído da escuta?", questiona a artista, ciente da inexistência do silêncio absoluto.
Já o Museu Ferroviário recebe a intervenção de três artistas que, por meio do rearranjo dos objetos do próprio acervo, apresentam instalações inusitadas que sugerem a construção de novas narrativas.
Com a proposta de dar outro sentido aos objetos do cotidiano, a artista mineira Laura Belém propõe uma instalação com relógios que ficaram no museu quando a estação foi desmontada, no ano de 1971. Ao todo, 16 relógios ocupam paredes das salas do museu, sem se movimentar, enquanto apenas um deles, consertado especialmente para a obra, produz o som de tique-taque amplificado por um sistema de som. Laura Belém também selecionou e reuniu dezenas de objetos do museu em uma das salas. "Essa desconstrução da ordem das coisas pode sugerir novas narrativas", comenta a "desleitora" Leila Cristina Lourindo de Aquino.
Com a incumbência de propor "desleituras" aos visitantes, Leila conduz a reportagem do Mais Cruzeiro à sala seguinte, que abriga uma instalação assinada pela artista Rochelle Costi. Intitulado Passageiros, a obra site specific, isto é, concebida especialmente para esse espaço, apresenta retratos com interferências de desenhos. Esses trabalhos estão fixados em molduras originais do museu. Há, ainda, textos ficcionais sobre 11 pessoas que "poderiam ter sido" passageiras da Estrada de Ferro Sorocabana (EFS).
Ainda mais provocativo, Victor Leguy ocupa outra sala do museu para, de certa forma, denunciar o descaso do poder público com a ferrovia. Na instalação Cápsula 1, o artista apresenta objetos, grafites, fotos e vídeos que mostram o estado de abandono de um dos galpões da extinta EFS.
A obra mais contundente de Leguy, no entanto, ocupa o porão do Museu Ferroviário e é formada por centenas de terminais de eletrificação de trens, retirados pelo próprio artista de um galpão abandonado. "O artista disse que essa obra representa o superfaturamento, porque essas peças foram compradas durante o governo do Getúlio Vargas e nunca foram usadas", explica Leila. Em frente à pilha de material subtilizado, um cofre do acervo do museu, aberto, "guarda" o valioso projeto de eletrificação da estrada de ferro lançado na época e anunciado pelo então presidente da República.
Já no Palacete Scarpa, o anúncio da presença da artista plástica argentina Ana Gallardo provoca euforia nas crianças que fazem questão de formar fila para ganhar um autógrafo. "É a primeira vez que eu dou autógrafos. Me sinto feliz. Não imaginava que as artes visuais poderiam encantar tanto as crianças", afirmou a artista.
Para o Frestas Trienal de Artes, Ana Gallardo desenvolveu o vídeo e performance Exercícios primários, no qual ela mesma contracena com alguns moradores de Sorocaba que, ao chegarem na terceira idade, estão conseguindo realizar seus sonhos.
A vídeoinstalação composta por três vídeos mostra a própria artista e seus personagens da cidade fazendo aulas de dança tradicional japonesa, cultivando verduras em um sítio e, por fim, participando de uma leitura coletiva de poesias da escritora Maria Lucila Rogick Vieira. Os textos de Maria Lucila, que atualmente vive em São Paulo, foram extraídos de cadernos pessoais que, por motivo desconhecido, estavam guardados no Palacete Scarpa. "Conviver com essas pessoas foi uma oportunidade de muito aprendizado para mim", resume Ana.
Também nas dependências do Palacete Scarpa, o artista Bill Lühmann apresenta painéis desenvolvidos a partir de objetos coletados nas ruas de Sorocaba e também o inusitado Projeto sofá, no qual ele expõe objetos achados nas frestas de um sofá do Palacete Scarpa, como confetes, grampos de cabelo, cascas de amendoim e cabelos. "Também estão expostos brinquedos coletados nas ruas, bilhetes achados no chão e as colas de escola que o próprio artista fazia durante a adolescência", detalha a "desleitora" Amanda Crsitina Mabilia Morii.
Serviço
O Palacete Scarpa (rua Souza Pereira, 448) fica aberto de terça a sexta, das 9h às 17h30 e sábados, domingos e feriados das 10h às 15h30; o Barracão Cultural (av. Afonso Vergueiro, s/nº, ao lado da estação ferroviária) funciona de terça a sexta das 9h às 17h, sábados, domingos e feriados das 10h às 15h30. Já o Museu da Estrada de Ferro Sorocabana (rua Álvaro Soares, 553) pode ser visitado de terça a sexta das 9h às 17h30, e aos sábados, domingos e feriados das 10h às 18h30. A entrada é gratuita em todos os espaços.