ARTIGOS

A crise hídrica veio para ficar. O que podemos fazer?


Alexander Vicente Christianini

Se voltássemos ao final do século 19 ou início do 20 olharíamos ao redor assustados: a paisagem que nos cerca seria absolutamente irreconhecível. Até esta época boa parte de nosso Estado ainda era coberta por uma Mata Atlântica exuberante, do litoral até o Rio Paraná, com exceção de áreas cobertas por Cerrado como nas regiões de Bauru, Itapetininga e São Carlos, no interior. Esta floresta cedeu lugar ao café, às pastagens, à cana-de-açúcar, às cidades. Mas ela tinha papéis importantes na conservação e fertilidade do solo bem como na regulação do clima regional. Estudos mostram que um dos preços desta drástica mudança no uso da terra foi transformar São Paulo, a "terra da garoa", em um local onde aumentou a frequência de episódios climáticos extremos, com a chuva agora concentrada em menos dias ao longo do ano e espaçada com períodos de seca. Aumentaram os episódios de temporais catastróficos que destroem a infraestrutura e ceifam vidas, especialmente nas áreas mais pobres. Mas estas mudanças não ocorreram apenas aqui. O mesmo fenômeno ocorreu e continua ocorrendo em escala global.

Há mais de duas décadas os cientistas alertam sobre os riscos de mudanças climáticas em razão de emissões de poluentes causadores do efeito estufa desde a Revolução Industrial e de mudanças no uso da terra aceleradas especialmente no século 20. Sabe-se que a cobertura florestal na Amazônia desempenha um papel importante na regulação do clima da América do Sul (veja em www.ccst. inpe.br) e que é no Cerrado - hoje boa parte ocupado pela soja - que ocorre parte importante da recarga do aquífero Guarani, um dos maiores reservatórios de água do mundo. E o que temos feito a respeito? Não demos e não temos dado a devida atenção a estes alertas. Continuamos explorando nossos recursos naturais como se ainda vivêssemos no início do século 20, quando a fartura sugeria enganosamente que estes recursos eram infinitos. Só que a ação de nossos ancestrais e hoje em dia de nós mesmos, em uma população várias vezes maior mudou este cenário. O choque de realidade trazido pela recente crise de abastecimento de água e o prelúdio de dias difíceis nas próximas estações secas são oportunidades para revermos nossos hábitos.

Sabemos, por exemplo, que já não basta apenas não desmatar, pois desmatamos mais do que seria prudente. Precisamos trazer de volta parte da floresta e do Cerrado para garantir nosso abastecimento de água. Um exemplo é a parceria entre ONGs, poder público e a iniciativa privada que provêm estímulos aos produtores rurais para recuperarem as áreas de preservação permanente em suas propriedades. Estas propriedades passam a ser produtoras de água e recebem um valor anual por este serviço ambiental (veja em www.tnc.org.br). A agricultura e a indústria, grandes consumidoras de água, devem rever seus métodos de produção de maneira a utilizarem a água de forma mais eficiente. Cidadãos devem tomar iniciativas para reduzir o consumo e jamais descartar pilhas, baterias ou medicamentos em vasos sanitários ou locais inapropriados, pois seus resíduos não são totalmente removidos pelos métodos usuais de tratamento e, além de contaminarem o ambiente, voltam para nós mesmos na água. Dê preferência a produtos e hábitos menos agressivos ao meio ambiente. O poder público de São Paulo não deve se furtar de planejar de forma adequada o abastecimento de água, como ocorreu nesta crise, bem como o ordenamento e ocupação do território, incluindo o Plano Diretor das cidades, prevendo o impacto de mudanças no uso do solo, antecipando suas conseqüências e fiscalizando sua aplicação. A sociedade brasileira alcançou mudanças positivas notáveis ao longo das últimas décadas. Merecemos e podemos fazer mais. Mas não há milagre. Pessoas, empresas e instituições públicas devem fazer sua parte.

Alexander Vicente Christianini é biólogo, doutor em Ecologia pela Unicamp e professor do Departamento de Ciências Ambientais UFSCar, campus Sorocaba