CONTOS DE UMA CIDADE MORTA

O êxodo


Luciano Leite*
 
O povoamento da Saudade começou de forma lenta e gradual, no ritmo natural de uma cidade ainda pequena e ensimesmada, em que as relações de amizade e parentesco se confundiam. Na calmaria dos dias, apenas a esperança no amanhã, o conhecimento passado de geração a geração das colheitas, da engorda dos bichos, dos preconceitos, das festas religiosas e da função medicinal das ervas.
 
O que coloria um pouco a pasmaceira no final e dava um ar pseudocosmopolita à cidade eram os europeus, principalmente portugueses, sempre em maior número, espanhóis, italianos e uma grande colônia de alemães. Vieram todos “fazer a América”, sem saber ao certo o que isso significava. Trocaram o horizonte de fome, frio e certo da Europa, pela incerteza quente desses trópicos, confiantes que o que o faz o homem o acompanha por onde quer que vá. Àquela altura, ainda que inconscientemente, já entendiam que cabia à massa trabalhadora pagar pelo espetáculo do progresso e eram o lado da corda mais fraco, reflexo do inchaço populacional europeu, das colheitas ruins, das guerras, da consequente falta de comida e da Revolução Industrial, que substituía braços por máquinas. Traziam as novidades do Velho para o Novo Mundo, ainda agrário e que precisava, tardiamente, substituir a mão de obra escrava pela assalariada, a partir da segunda metade do século XIX.
 
A história e o poder fazem seus jogos e arrastam todos como peças num tabuleiro, como o austríaco Wensceslaw Raszl e sua esposa, que migraram para Sorocaba em 1844. Pelo infindável Atlântico, apertados no porão do navio Josefina, ele negou a todo momento seu coração encharcado por um mar de incertezas. Não deixou transparecer a sua companheira, em nenhum momento durante a longa travessia, o menor vacilo, nenhuma dúvida, nem uma ponta de medo. Representou firme o monólogo que inventou para si e para o qual fora ensaiado por toda a vida, a de bastião firme da família. Seu olhar era pura seta a desbravar o horizonte. Apenas no banheiro do navio, na coxia do teatro de si mesmo, sozinho, certamente, chorava. Quando por aqui chegaram no dia 7 de Junho, não estranharam a vida interiorana, nem o saneamento básico precário da cidade; apenas a língua, o calor e a grande quantidade de negros perturbaram um pouco suas retinas claras e fatigadas por outras paisagens.
 
Wensceslaw sempre desconfiou das coincidências e sentia, bem lá no fundo, que tinha uma missão a cumprir nessa terra. Com isso em mente, mais o dinheiro que trouxe da Europa e muita vontade empreendedora, juntou-se com um sócio húngaro, chamado Antonio Rogich, e deram inicio a pioneira fábrica de chapéus, em 30 de agosto de 1852, fazendo a cabeça dos sorocabanos.
 
Os negócios iam bem para esses alemães (pelo menos era dessa forma que eles eram conhecidos nessa terra em que todo amarelo é japonês e todo turco é judeu). Mas, como nem tudo pode ser, por mais que desejassem, os filhos dos Raszl não vinham e não vieram nunca. Wenceslau decidiu, então, num misto de generosidade e falta de mão de obra especializada na fabricação de chapéus, convidar seu sobrinho Peter e seus filhos para compartilhar da bonança a trabalharem no próspero negócio. No que logo aceitaram, deixando pra trás a província Alt-Zedlitz, na Áustria, e desembarcando aqui em 1882 -- Peter Raszl com sua esposa Katharina Hertling e seus oito filhos, Antônio, Raimundo, Peter Filho, Franz, Josef, Catharina, Magdalena e Luiz. Já adaptados e estabelecidos, só os mosquitos, que insistiam em zumbir em toda a casa, faziam-nos lembrar a toda hora da distância da terra mãe. O tempo, que corria calmo, no entanto, era na realidade prelúdio de grandes tragédias e o cenário bucólico iria mudar dramaticamente em 1897, despedida de um século que terminaria de forma violenta.
 
Há tempos que um mau agouro rondava a cidade, todos perplexos por Sorocaba ser a única da região do interior do Estado a não ser atingida pela febre amarela, mesmo sendo rota de passagem a moribunda Feira de Muares. De tanto agourar a praga veio, tendo por vetor um mosquito, que por motivos muito próprios dele -- do mosquito -- fez suas primeiras vítimas entre os europeus, começando pelos pioneiros Raszl. Wenceslaw não se enganara, sua família tinha realmente uma missão a cumprir, a de entrar para a história da cidade, só não se sabe se pelos chapéus ou pela doença. Morreram espanhóis, portugueses e brasileiros, no total de 42 óbitos. O susto inicial mobilizou homens que o tempo tornou importante, como o engenheiro Paula Souza, que se autonomeou intendente de higiene, e o dr. Álvaro Soares, que dirigiu o combate inicial à epidemia. Após o primeiro susto e as preces a São Roque, a epidemia retrocedeu.
 
Estabelecido à Rua das Flores, o alemão Ludwig Malluche, casado com Magdalena Raszl, via sua padaria novamente prosperar, sinais de um tempo sombrio que havia ficado para trás. Os clientes que haviam abandonado a cidade por causa da febre retornavam pouco a pouco, confiantes que estavam novamente na ilusão da estabilidade de uma vida natural e pacata. A primeira fornada de pães, exposta no cesto antes mesmo do sol raiar, como é natural a toda padaria, correu sem grandes novidades. Ludwig sentia-se forte e confiante no futuro, como todo doente que se recupera milagrosamente um dia antes do seu dia fatal. Ao meio-dia, sentiu náuseas. Inaptidão eterna às comidas dos trópicos, pensou. Após dar o troco a um cliente, sentiu fortes dores de cabeça e não conseguiu segurar o vômito escuro, que correu entre os vãos dos seus dedos. Sentiu medo.
 
Os vizinhos, preocupados, chamaram os drs. Álvaro Soares e Artur Martins em socorro ao doente. Diagnosticaram que, misteriosamente, a temida doença prefere realmente aos de olhos claros e cabelo loiro. Era novamente a febre. Agora, ela vinha com toda força e a cidade de Sorocaba estava, em 1899, mais uma vez, grávida da morte. Seguindo seu caminho letal encontrou os alemães Alexandre Richtman, Frederico Fritz, um dos seus filhos e sua filha Lídia Gulgen; era voz comum que todos haviam estado na casa do Sr. Malluche.
 
Como apenas as doenças dão aos homens o sentimento da sua real existência, cada um procurou a seu jeito formas de ludibriar a morte que se fazia presente a cada esquina. Estado febril, calafrio, dores no corpo ou manchas na pele eram motivos de grande reflexão e pânico ao doente, além da generosidade ou do abandono dos demais. Os tempos difíceis reforçam o melhor e o pior das qualidades humanas. No auge da doença, em 1900, dezenas de mortos eram empilhados nas carroças do governo e jogados na vala comum aberta no cemitério da Saudade, sem tempo às devidas formalidades da morte, contando apenas com uma generosa pá de cal por cima, como medida sanitária.
 
Com as idas e vindas da pestilência, ora mais forte e ora a espreitar a próxima vítima, até o sanitarista Emílio Ribas foi chamado a Sorocaba para dar combate à doença. Numa cidade mergulhada nas trevas da ignorância, o famoso sanitarista não conseguia convencer o populacho que a causa da doença era a falta de saneamento básico e higiene como formas de combater o vetor da febre, o mosquito. Difícil fazer uma matemática precisa; uma estatística aceitável contabilizou 600 mortos, que independente do número provocou no inconsciente coletivo da cidade o retrato de uma verdadeira tragédia. A Saudade recebeu generosamente a todos na sua grande cova democrática, acolhendo europeus ou não, em seus derradeiros êxodos. Selou de forma violenta o século XIX e, de certa forma, anunciou o próximo, calcado no positivismo e na modernização do trabalho industrial.
 
A visão da cova coletiva, hoje em dia, é menos desoladora quanto fora outrora, mas ainda triste. Localizada próxima ao portão oposto à entrada principal do cemitério, não guarda nada que possa lembrar tantos horrores e vítimas. É um grande borrão de cimento novo, como solução à terra que há tempos começara a ceder. Fica próxima a rua Princesa Isabel, na cabeceira dos caminhos em forma de cruz que dividem o cemitério.
 
Esses mortos ficaram no meio do caminho, entre duas quadras. Nenhuma lápide, nome inscrito, nada. São os esquecidos da Febre. Para reforçar a incômoda impressão, várias patas de cachorro marcam o cimento cinza claro, numa prova que a vida natural segue sempre alheia aos sentimentos humanos.
 
Outros eventos trágicos e pessoas potentes tiveram lugar nessa virada do século, mas, a esses, dedicarei um capítulo à parte.
 
 
* O texto "O êxodo" é o terceiro de uma série de nove que compõe o livro "Contos de uma cidade morta", de Luciano Leite, produzido com apoio do Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo (ProAc) e publicado com exclusividade pelo portal do jornal Cruzeiro do Sul. Todos os direitos reservados ao autor. Reprodução proibida sem permissão expressa do autor e do jornal.