SOROCABA E REGIÃO

'O perdão é uma decisão pela paz', diz terapeuta


"Shakespeare dizia que não perdoar é como tomar um veneno esperando que o outro morra." É com essa frase que o médico homeopata, escritor e presidente da Associação Médico-Espírita de Minas Gerais, Andrei Moreira, explica a importância do processo de perdão na manutenção da saúde física e emocional das pessoas. Não perdoar adoece, mas como aprender a perdoar? Qual é o caminho da busca do estado de paz trazido pelo perdão? O primeiro passo é deixar o papel de vítima e reconhecer que as relações profundas como as vividas entre pais e filhos e companheiros afetivos, deixam marcas, invariavelmente, afirma.

Mágoas não trabalhadas podem adoecer o corpo. Azia, má-digestão e até processos mais profundos de adoecimento como o câncer, garante o médico, podem ser consequências de feridas emocionais não tratadas. Assim, o movimento do perdão e do autoperdão é uma decisão íntima do indivíduo que busca a saúde e o reequilíbrio emocional. Andrei também trabalha com constelações familiares e defende que a reconciliação e o perdão são leis naturais buscadas por todos como forma de reequilibrar as relações quando existem conflitos.

Para que o processo do perdão seja sincero e verdadeiro, e não apenas da boca para fora, é preciso que a pessoa olhe também de forma amorosa para suas próprias limitações, defende o médico.

Andrei Moreira também é terapeuta sistêmico de constelação familiar e expositor espírita há 20 anos. Ele é coordenador de divulgação nacional e internacional e de caravanas de voluntariado da Fraternidade sem fronteiras, ONG que acolhe a mais de 12 mil crianças órfãs em Moçambique e Madagascar, África (www.fraternidadesemfronteiras.org.br). Andrei esteve em Sorocaba no último final de semana para participar do 1º Congresso Médico-Espírita promovido pela Associação Médico-Espírita de Sorocaba (AME Sorocaba). Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

Cruzeiro do Sul - O que é o perdão?

Andrei Moreira - O perdão é uma decisão íntima pela paz. Pela paz de todos, mas inicialmente pela paz daquele que perdoa. Aquele que decide perdoar decide retirar de si o peso do vitimismo e o peso da dor que carrega. O perdão não é uma simples atitude. O perdão é um processo. Pode demorar, depende do tamanho da ferida. Tem feridas muito simples que uma decisão simples resolve. E tem feridas profundas e estruturadas que vão requisitar que a pessoa cuide delas com o mesmo carinho que cuida de uma ferida no corpo, que necessita que a gente faça múltiplos curativos até que ela cicatrize. Claro que a gente tem um monte de implicâncias no dia a dia, que pode facilmente se liberar delas com uma mudança de interpretação, uma mudança de visão, ou simplesmente decidindo pela paz naquela relação. Mas quando algo nos fere profundamente é preciso metabolizar. Ou seja, é igual a um alimento. Você não pega um pedaço de maçã e joga na corrente sanguínea. Para que aquela maçã seja nutritiva, ela tem que ser mastigada, digerida, reduzida aos elementos nutritivos dela. Nos processos emocionais, a gente precisa digerir o que é vivido, reconhecer o que foi sentido, reconhecer se aquele sentimento é originário daquela relação ou se é repetitivo. Precisamos reconhecer qual é a nossa parcela de responsabilidade naquilo, enfim, digerir.

CS - Muitas dessas experiências acontecem na infância, idade em que não temos capacidade para digerir isso, não é?


AM - É. E isso vai ser digerido ao longo do processo do desenvolvimento ou, mais frequentemente, na vida adulta. Mas o que acontece é que a maioria das pessoas, ou uma boa parte, ao invés de digerir, permanece acusando a própria história. Permanece sentindo a dor daquela ferida aberta sem cicatrizá-la. O que caracteriza a vida adulta é que o adulto é responsável por si mesmo. E é capaz de fazer transformações na própria vida. Então, não importa o que aconteceu na nossa própria história, importa o que nós fazemos da história que vivemos. Aquilo que interpretamos do que foi vivido é que vai determinar como vai ser a vida hoje. Assim, o adulto, quando olha para a sua história com aceitação, com resignação ativa -- que é aquela que não briga com a história, mas a metaboliza, transformando-a -- fecha as suas próprias feridas.

CS - E como aprender a perdoar e a fechar nossas próprias feridas?

AM - Primeiro precisa decidir perdoar. E decidir perdoar é decidir sair do papel de vítima. Não tem perdão sem sair do vitimismo. O ressentindo permanece na postura de vítima sem liberar a pessoa daquela idealização que projetou nela. Então, o outro é sempre o culpado porque deveria ter cuidado, deveria ter feito, deveria ter falado... E o que importa é que o que aconteceu conosco é patrimônio nosso, somos nós que fazemos hoje a síntese do que nos aconteceu.

CS - O autoconhecimento é importante para que a gente aprenda a perdoar?


AM - Sim. Ele é essencial. Só sai do vitimismo e caminha para a responsabilização pessoal quem mergulha em si mesmo e se conhece. Tem que se conhecer para reconhecer as suas próprias emoções, quais são os sentimentos que estão escondidos por detrás das próprias emoções e reconhecer as origens desses sentimentos. A emoção é superficial, é uma resposta afetiva a um estímulo que pode ser interno ou externo. Externo pode ser uma circunstância que aconteceu e interno pode ser um pensamento, uma fantasia, ou mesmo uma questão fisiológica. A emoção é fugaz, é igual a um fogo que acende e apaga, com resposta fisiológica e resposta emocional, ou seja, com repercussão física e na esfera afetiva. Já o sentimento é estrutural, está por detrás da emoção. O sentimento é raiva, medo, alegria, preocupação... Há um sentimento por detrás da emoção. Então, se eu sei qual é o sentimento, eu posso mergulhar no sentimento. Aí eu pergunto para mim mesmo: onde isso aqui começou? Onde é que eu lembro disso pela primeira vez? Aí eu posso ir lá na raiz.

CS - E quais são os caminhos para o autoconhecimento?

AM - Existem vários caminhos. A meditação é um deles. A oração é outro, porque a oração nos ajuda na reconexão conosco mesmo e a reconhecer o que é nosso... A terapia, com suas diversas linhas, é outra possibilidade, os cursos, as leituras, palestras, experiências vivenciais, corporais... Tem muitas formas. Tudo que leva a se conhecer e a expandir a consciência, agrega.

CS - Com relação aos efeitos físicos da mágoa, o que de ruim pode nos trazer?

AM - Shakespeare dizia que não perdoar é beber veneno esperando que o outro morra. Então, não perdoar é autodestrutivo porque o ressentido vai reviver aquela história continuamente, e esse ato de reviver, em linguagem psicanalítica, é um ato autopunitivo pela culpa de não assumir a responsabilidade pela própria história. Então a gente projeta a responsabilidade no outro e fica revivendo o ato agressor, autoagredindo-se. Ocorre uma liberação de hormônios, daquela cascata neuroquímica, da mesma forma que ocorreu no evento original. E adoece, claro. Depende do organismo da pessoa e também do tempo que você nutrir isso.

CS - Alguém falou que a maior fonte de traumas são nossos pais. Isso é verdade? Como lidar com isso?

AM - Sem dúvida são. Um bom pai traumatiza o filho sempre. Não tem como não ter trauma. Os pais que tentam não traumatizar os filhos e não deixar nenhuma marca neles o que vão conseguir é criar pessoas extremamente despreparadas para a vida. A vida vai o tempo todo nos desafiar e nos deixar marcas. Então, os pais sim, deixam marcas, algumas intencionais, mas a maioria não intencionais e está tudo certo. Esse é o processo da educação. É claro que não estou falando aqui de pais violentos ou agressivos. Estou falando dos pais não tratarem os filhos com dó. Isso requer mais amor. O problema é que os pais modernos precisam do amor dos filhos. Então, não frustram os filhos porque precisam receber daquele amor e, para receber daquele amor -- porque não aceitam receber do amor dos pais, como eles tiveram para dar -- fazem críticas aos seus pais e acabam colocando os filhos num lugar que não lhes pertence.

CS - Como trabalhar isso no dia a dia?

AM - Simples assim: "Meu filho, aqui quem manda sou eu. Aqui você não mete o bedelho, aqui eu não pedi sua opinião. É assim porque estou mandando, depois, se eu quiser, eu te explico." O que muitas vezes é tratado como autoritarismo é, na verdade, firmeza amorosa.

CS - Como trabalhamos o perdão em uma relação afetiva?

AM - Primeiro a gente trabalha cuidando daquilo que é nosso. Uma boa parte das mágoas dentro de uma relação afetiva deriva da gente projetar no outro expectativas e idealizações que não compete ao outro corresponder. Exemplo: questões não resolvidas com os próprios pais são projetadas na relação de casal. Então, quando alguém não aceita ou não toma o amor dos pais como eles têm para dar, então exige que o parceiro ou a parceira os ame com uma dedicação de amor incondicional que só os pais têm. E isso se torna uma exigência impossível para o outro corresponder. Segundo, é que a gente aprenda a amar a luz e a sombra do outro. Um relacionamento afetivo não é feito por uma idealização como acontece na paixão. Em um relacionamento maduro, onde haja amor, a beleza e a feiura estão demonstradas. Nós escolhemos amar a beleza, então quando a gente olha para o outro com humanidade, com compaixão, o perdão é possível, mas primeiro temos que olhar para nós mesmos dessa forma. Quem não acolhe a própria sombra, não aceita nem acolhe a sombra do outro. Quem é compassivo consigo também se torna, naturalmente, compassivo com o outro. E, terceiro, quando há uma lesão afetiva, é importante que a gente aprenda a relevar equilibrando a relação. Relevar significa aceitar que dentro de uma relação afetiva madura e profunda as pessoas se ferem minimamente. Bert Hellinger tem uma frase em que diz que em uma relação nós devemos aceitar pelo menos dez pecados. Isso é uma visão muito bonita porque mostra que a gente tem que olhar para o outro sem a ilusão de que nunca vai ser ferido, ou de que nunca vai ferir.

CS - Qual é o papel da religião nesse processo de perdão a si mesmo e ao próximo?

AM - A religião enquanto movimento profundo da alma é extremamente importante porque é a reconexão da criatura com o criador. Se for uma religião dogmática, ela pode ser prejudicial porque leva o indivíduo a adotar padrões de exclusões ao invés de caminhar para a reconciliação. A verdadeira religião é esse movimento de reconexão que pode ser dentro da religião ou fora dela. Mas a religião, quando verdadeiramente vivida, o facilita muito.