Pesquisa aponta para transformações do mito do saci
Em 1917, Monteiro Lobato propôs aos leitores do Estadinho, suplemento infantil do jornal O Estado de S. Paulo, do qual era colaborador, que enviassem cartas contando tudo o que soubessem ou tivessem ouvido falar sobre o saci-pererê. O vasto material recebido, com relatos sobre o mito por diferentes ângulos, foi compilado por Lobato e publicado no livro O saci-pererê: resultado de um inquérito.
Há dez anos, com intuito de atualizar as histórias de um dos personagens mais conhecidos do folclore brasileiro, o professor e historiador sorocabano Carlos Carvalho Cavalheiro propôs a "reabertura do inquérito", por meio de uma plataforma virtual colaborativa, no site da editora Crearte (www.crearte.com.br/saci). Para comemorar o centenário da iniciativa pioneira de Lobato -- foi a primeira publicação sobre a crença no saci --, o material organizado por Cavalheiro será lançado agora no formato de livro. A tarde de autógrafos ocorre na segunda-feira, às 14h, na Biblioteca Infantil (rua da Penha, 673).
Intitulado Reabertura do inquérito sobre o saci, o livro organizado por Cavalheiro tem 112 páginas e reúne histórias, desenhos, poesias e outras criações, vindas de várias partes do Brasil e coletadas desde 2007. O lançamento contará com um bate-papo com o historiador sorocabano. A entrada é gratuita e aberta a todos os interessados.
A edição impressa, segundo o organizador, é limitada em 100 exemplares e foi viabilizada com apoio cultural da Pousada Refúgio do Saci, de Atibaia. O exemplar estará à venda no dia do lançamento ao preço de R$ 20.
De acordo com o historiador, o livro é resultado de um projeto despretensioso que começou há uma década e permite comparar e perceber as mudanças do mito saci ao longo de 100 anos. "O saci é um mito em constante transformação. No inquérito do Monteiro, há relatos de que ele tinha chifres e era temido. Uma figura demonizada. Atualmente, ele é traquina, mas não é maldoso. É até simpático. Hoje ele está na versão paz e amor", afirma.
De acordo com o pesquisador, é possível constatar que as mudanças de comportamento, e até as características físicas do mito, vão se transformando ao longo do tempo, "de acordo com os interesses de cada época". O historiador afirma que os primeiros relatos sobre saci que se tem notícia são da época da escravidão e traziam na figura mítica a personificação da revolta contra a opressão do sistema escravocrata. "Uma leitura que eu faço é que o redemoinho [a crença popular que diz que dentro do redemoinho de vento existe o saci] representa a liberdade, porque é algo que não dá para prender", exemplifica.
Cavalheiro acredita que também durante o período escravocrata, a figura mítica ganhou características brejeiras, como forma de justificativa oral aos lapsos dos escravos, que temiam punições. "Por exemplo, quando os escravizados trocavam o açúcar pelo sal, sem querer, eles culpavam o saci para não apanhar."
Com base nos relatos coletados durante a reabertura do inquérito, é possível constatar que o mito ganhou fortes traços de amigo das florestas e defensor da natureza. "Esse é um contexto mais recente", complementa. Cavalheiro detalha que reproduziu fielmente a metodologia aplicada por Monteiro Lobato no Estadinho, ao convidar interessados a escrever e enviar materiais a partir de três perguntas básicas: Sobre a concepção pessoal do Saci; como o recebeu na sua infância; de quem recebeu; que papel representou tal crendice na sua vida? Qual a forma atual da crendice na zona em que reside? Que histórias e casos interessantes, "passados ou ouvidos" sabe a respeito?
Além de artigos do próprio historiador, Reabertura do inquérito sobre o saci conta com relatos curiosos e de escritores consagrados como Luiz Galdino, os pesquisadores Andriolli Costa, Alexandre Fávero, Chico Nogueira, Mathias Schelp e os sorocabanos Geraldo Bonadio, Élcio Mário Pinto, Sérgio Diniz da Costa, Jorge Facury, Adriana da Rocha Leite, Débora Brenga, entre outros. A imagem da capa é de autoria de Luis Magnani, que enviou o desenho para o Inquérito.
Para a reabertura do inquérito, o historiador transformou uma sessão do site da editora Crearte, parceira de vários de seus projetos, em uma plataforma virtual colaborativa, muito antes do advento do conceito "wiki". "A despeito das novas tecnologias, a sobrevivência do mito é importante porque a realidade não nos basta. Nós precisamos acreditar em algo além da nossa realidade, para sobreviver e equilibrar a nossa alma", defende o historiador, que desde a infância carrega o interesse pelo mito do saci especialmente porque na sua geração, de crianças das décadas 1970 e 1980, a imagem foi fixada pela série de TV Sítio do pica-pau amarelo, baseado na obra de Monteiro Lobato.