Após a folia, retome a rotina e a vida saboreando um pãozinho com café de padaria, uma instituição brasileira
POR MARCO MERGUIZZO (*)
(*) Siga também no Instagram o conteúdo exclusivo do @blog1gole1garfada1viagem
O aroma inebriante da fornada invade o ambiente e as narinas da clientela. De textura inconfundível, uma crosta espessa, estalante, seduz à primeira mordida. O miolo arejado, macio e úmido prepara o paladar para o sabor terroso do trigo tostado e aqueles mais sutis que não emanam nem da farinha nem da água nem do sal, mas da combinação milenar - para uns, mágica, para outros, sagrada - desses três elementos.
Atraente aos quatro sentidos, o pão é talvez o único alimento inventado pelo homem que sacia e satisfaz. Além de confortar o corpo, presenteia a alma e ainda estimula a mente. Numa refeição, um pão saboroso é capaz de compensar uma entrada hesitante. Um prato inexpressivo. Um café frio. E até um lugar feio.
Com um pouquinho de manteiga, sua cara-metade ideal, transforma-se em uma união quase que sagrada, assim como o arroz-e-feijão, difícil de resistir. Na companhia de um café fresquinho, então, forma a santíssima trindade no ritual diário da grande maioria dos brasileiros antes do início (ou mesmo durante) o expediente de trabalho.
Quarta-feira de cinzas preguiçosa e já de volta do feriadão de Carnaval, onde a comilança e os tragos a mais marcaram presença à mesa, nada como retomar a rotina com aquele bom e velho pãozinho francês com manteiga na chapa, acompanhado de um café espresso ou de coador tirado na hora, ou mesmo de uma média de café com leite mais clara ou mais escura, dependendo do gosto pessoal, que nos habituamos a pedir nas centenas de padarias espalhadas pela cidade.
Tal predileção, porém, não é apenas do sorocabano e da grande maioria dos brasileiros. Provém desde tempos longínquos. Sabe-se que no Ocidente e em grande parte do Oriente, o pão sempre foi sinônimo de civilização, um símbolo da própria vida. Em seus poemas épicos, Homero reproduziu um conceito corrente na Grécia antiga ao denominar o ser humano como um "comedor de pão". Antes dos gregos, os egípcios dos tempos dos faraós também devoravam toneladas dessa milenar alquimia.
Os judeus, contemporâneos destes, compartilhavam igualmente dessa saborosa mania à mesa. A Bíblia confirma: "Por que gastais dinheiro naquilo que não é pão? (...) Comei o que é bom e vos deleitareis com a gordura" (Isaías, 55,2). Embora fosse um profeta de primeira classe, faltava à Isaías, por certo, a formação de nutricionista. Um bom pão não deleita a alma com gordura, já que não contém quase nenhuma gordura ou açúcar e, sim, proteínas e carboidratos complexos, já que é feito de três ingredientes elementares: a farinha, a água, o sal e, mais modernamente, o fermento.
O fermento, como se sabe, é um pedaço de massa no qual leveduras naturais e bactérias de ácido láctico vivem harmoniosamente em simbiose, gerando gases, álcoois e ácidos que conferem ao pão seu gosto complexo e sua textura atraente. Quem já fez pão na vida sabe: ao fermentar, a massa apresenta uma textura agradável ao tato e desprende um aroma especialíssimo. Não por acaso, o segredo de um bom pão está em sua manipulação, nos cuidados com a sua oxigenação e durante o processo de levedação - aquele misterioso lapso de tempo em que a massa cresce, transforma-se e fica pronta antes de seguir rumo ao forno.
EGÍPCIOS E INDIANOS DISPUTAM A PRIMAZIA DA CRIAÇÃO DO PRIMEIRO PÃOZINHO
Seja como for, o mais antigo vestígio de pão feito de trigo foi achado na Índia, numa tumba do ano de 2500 a.C.. Todos os pesquisadores e historiadores afirmam, entretanto, que o primeiro povo a fabricar o pão foi o egípcio. A partir dali, a massa manipulada sobre pedra lisa e posta para cozer numa espécie de grelha atravessou o Mediterrâneo e se desenvolveu de tal modo na Grécia, no terceiro século antes de Cristo, que mais de 70 tipos de pães foram catalogados pelos pesquisadores. No século seguinte, o pão chegaria à Roma antiga. De lá se espalhou pelo resto da Europa.
No Brasil, os portugueses trouxeram as técnicas de panificação entre os séculos 19 e 20, sacramentando a influência lusitana e, desce então, seus descendentes passaram a dominar o setor até os dias de hoje. Imigraram para cá naquele período para trabalharem na agricultura. Deixaram o campo para seguir rumo às cidades abrindo o próprio comércio na produção de pães, bolos e doces da Terrinha, adaptando-os aos ingredientes locais. Muitos deles não eram necessariamente padeiros e tudo aquilo que saia de seus fornos provinha da tradição familiar e da boa mesa lusa. Depois de várias décadas dominando o setor, os padeiros portugueses estabeleceram uma tradição e uma marca de qualidade inconfundíveis que perduram até os dias atuais.
Capítulo especial, o pãozinho francês ainda é o campeão na preferência do brasileiro - mas, de francês, ele só tem o nome. Começou a ser feito nas primeiras décadas do século passado nas principais capitais brasileiras, caso da então capital, o Rio de Janeiro, onde provavelmente nasceu, e São Paulo, sob a influência cultural da Belle Époque que dominava não só a França mas o restante da Europa e o mundo, não se restrigindo tão-somente à gastronomia mas estendendo-se também aos campos da moda, artes e hábitos sociais.
À época, o pão popular na França era curto e cilíndrico, com miolo firme e casca dourada - um precursor da baguete, que só consolidaria a forma comprida dos dias de hoje em meados do século passado. Enquanto que, no Brasil, o pão comum tinha miolo e casca escuros - uma versão tropicalizada da receita original italiana. Por essas e outras, o pãozinho-nosso-de-cada-dia se tornaria conhecido lá fora como "pão brasileiro", mas aqui se popularizou como francês e até hoje é o preferido de seis entre dez consumidores do país.
PADARIAS DE ANTIGAMENTE VERSUS AS SUPERPADARIAS DE HOJE
Mas, ao contrário das padarias tradicionais inspiradas pelos portugueses - ou seja, aquelas de estrutura familiar e que se encontram costumeiramente a cada esquina em todos os cantos do país -, começaram a surgir em meados dos anos 90 nas grandes capitais brasileiras as chamadas "superpadarias". Um fenômeno essencialmente brasileiro, tais endereços nasceram como uma mistura dos cafés portenhos (aqueles típicos da capital argentina) com os antigos mercadinhos do interior.
E, com o passar dos anos, foram se transformando e se sofisticando nas requintadas "padarias de conveniência" dos dias atuais. Nestes locais, além da enorme oferta de tipos de pães, tortas, bolos e doces, pode-se comprar quase de tudo: de cerveja a vinhos, de pizzas a refeições completas, de jornais a revistas nacionais e estrangeiras e, até, baterias de celular e relógio.
Seja como for o estilo de estabelecimento, nas padarias ou padocas, como elas também são carinhosamente chamadas, não há regime, não há dieta, não há modinha gastronômica que sobreviva. Padaria é lugar para deixar de fora os exames cardiológicos e abraçar o bolovo, a salsicha mergulhada no molho de tomate com "sustança", o descomunal croquete de carne ou a pantagruélica coxinha de frango.
Ponto de encontro para lá de democrático, é na padaria que se encontram o trabalhador, o corredor de rua, o ciclista, o playboy que virou a noite, o bêbado matinal e o policial de plantão. Na padaria não existem crises econômica, política, de valores. Na padaria tem sempre uma discussão acalorada de especialistas sobre o assunto do dia, quase sempre o futebol. Ou a política. Ou vice-e-versa e não necessariamente nessa ordem.
Na padaria, pela manhã, renovam-se todas as esperanças. A padaria nos dá a todos a verdadeira perspectiva: pode ganhar a próxima eleição este ou aquele partido político; este ou aquele time de futebol. A única certeza é que a média e o pão na chapa nunca vão mudar. Que alívio. Como disse o escritor gaúcho Luis Fernando Veríssimo, "a padaria é onde vive o popular".
Viva, então, o pão-nosso-de-cada-dia e o povo brasileiro! E muitos vivas às padarias - instituições democráticas do paladar e orgulho dos consumidores das classes sociais de A a Z.
(*) MARCO MERGUIZZO é jornalista profissional especializado em gastronomia, vinhos, turismo e estilo de vida. Confira outras novidades no Instagram (@blog 1gole1garfada1viagem) ou clique aqui e vá direto para a página do blog no Facebook.