ARTIGOS

Decifra-me ou...


Aldo Vannucchi

Ouve-se, às vezes, que fulano é uma esfinge, porque sempre calado, enigmático. Tudo por causa de um monstro grego, Sphinks, o que aperta e sufoca, instalado numa rocha, às portas de Tebas. Era a Esfinge, modelada com rosto de mulher e corpo de animal. Ninguém conseguia ultrapassá-la, porque interpelava qualquer viandante com este enigma misterioso: "Qual é o animal que, de manhã, anda de quatro pés; de tarde, com dois, e, no fim do dia, com três?" Mas Édipo conseguiu e matou em cima: "É o ser humano que começa a vida engatinhando; depois, crescido, anda ereto, sobre os dois pés, e, na velhice, precisa de um apoio, como um terceiro pé". E assim ele passou vitorioso, entrou na cidade e se tornou o rei de Tebas.

Como em todo mito, temos aí um belo conteúdo de verdade, a saber, a existência humana é um enigma que desafia todo ser humano. Viver é decifrar-se a toda hora. Afinal, quem somos nós? Evidentemente, não somos coisas, nem meros vegetais, nem simples animais. Todos esses componentes do universo não sabem o que são nem sabem que existem. São apenas seres individuais, coisas, vegetais e animais; só nós somos pessoas.

Coisa aparece como coisa e desaparece como tal. Vegetal brota, cresce e morre sem saber por quê. Animal nasce animal e morre na pura animalidade. O ser humano, ao revés, tem a vocação de pessoa, tem consciência de si mesmo, seja ele um desconhecido zé-ninguém ou um Lula famoso.

Ressalto, a propósito, que, filosoficamente, é impróprio chamar alguém de indivíduo, como acontece no jargão da polícia. Podem reparar: na reportagem de um crime, suspeitos e réus são seres humanos, portanto, pessoas, têm nome próprio, mas na ocorrência policial acabam chamados de indivíduos, quando não de elementos. Ora, indivíduo é qualquer ser concreto e elemento, uma parte qualquer de um todo.

Não é um indivíduo nem um elemento que a Esfinge provoca, mas uma pessoa. Daí por que o quebra-cabeça por ela proposto inclui a célebre e terrível ameaça "decifra-me ou te devoro". Esse desafio nada tem de mitológico. A avidez com que engolimos, hoje, o noticiário nacional, sem discernimento crítico, devora, com a voracidade de um incêndio, os mais comezinhos princípios do bom senso, na prática da sociabilidade urbana. Desbota-se, assim, a dignidade pessoal. Parece que desapareceram no País as possibilidades de diálogo. Predomina o confronto. Não a razão, mas a paixão.

Para captar o fundo verdadeiro do desafio esfíngico, é conveniente reconhecer que decifrar é traduzir um texto de difícil leitura e esse texto, no caso desse mito, é a própria existência humana, entretecida tanto por simples dados textuais diretos como de complexas realidades contextuais. Nunca é demais lembrar: "viver é perigoso".

Imaginando o lançamento do "decifra-me" do monstro, aqui e agora, a todos os que vamos caminhando por este país revolto e incerto, onde encontrar líderes de estatura moral e política que nos orientem, definitivamente, para uma educação que plasme pessoas e não reles indivíduos e insignificantes elementos? Como explicar e convencer , neste período pré-eleitoral, que fere a dignidade da pessoa humana quem defende, por exemplo, a tortura ou simpatiza com o estupro?

Aldo Vannucchi é mestre em Filosofia e Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e licenciado em Pedagogia. Autor de diversos livros, foi professor e diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba (Fafi) e reitor da Universidade de Sorocaba (Uniso) - [email protected]