1 gole, 1 garfada, 1 viagem

Já mergulhou o pão no café com leite? Conheça as origens do pingado e do copo americano, um par inseparável


Por MARCO MERGUIZZO  

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Esqueça a etiqueta e demais mesuras à mesa. Lambuzado de manteiga, o pão de casca crocante mergulha no café com leite. Bastam alguns segundos boiando no pingado - aquela "poção" matinal amarronzada irresistível que se mescla no tradicional copo americano - para que o pãozinho na chapa ganhe uma textura úmida singular, quase celestial, e incorpore os sabores lácteos associados à cafeína.

A cena é recorrente em padarias, bares e lares de todo o país: mais café que leite para uns. Mais leite que café para outros. Cortado, no sul do país e nos países vizinhos como Chile, Argentina e Paraguai. Meio a meio como se diz no sertão nordestino. Média, no subúrbio do Rio de Janeiro, como eternizou o carioca da gema Noel Rosa (1910-1937), sambista e letrista genial nascido no bairro de Vila Isabel: "Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa / Uma boa média que não seja requentada / Um pão bem quente com manteiga à beça".

Para muitos, a forma perfeita para começar bem a jornada semanal e cotidiana, seja ela em casa ou na padoca da esquina, o pingado-nosso-de-cada-dia mais do que satisfazer o paladar afaga a memória afetiva de muitos, resgatando a simplicidade dos sabores dos bons tempos da nossa meninice. Um hábito trazido pelos imigrantes europeus habituados a saborear caldos espanhóis, sopas portuguesas e a zuppa italiana na companhia de um bom naco de pão. Sem contar que "limpar" o prato com uma fatia de pão é na gastronomia um elogio para qualquer chef de cozinha. 

Só essa magia afetivo-gastronômica para explicar o sucesso do pingado, marca registrada nas manhãs do brasileiro, um verdadeiro ícone e instituição nacional. Ritual diário para aqueles que, na correria do dia-a-dia, muitas vezes não dispõe de tempo para preparar seu café em casa, a bebida, como o próprio nome diz, consiste em um copo de café quente, com leite "pingado" apenas o suficiente para quebrar a cor negra e o sabor acentuado do grão.

Outros dizem que é o contrário, o café é que é adicionado ao leite. De qualquer maneira, a expressão cabe perfeitamente. Apesar disso, é preciso saber diferenciar o pingado da "média". Outra campeã de pedidos nas padarias brasileiras, a média consiste, na maioria das vezes, em partes iguais de café e leite no copo Americano, mas nada impede que o cliente peça mais café ou mais leite, a seu gosto. Mais clarinho ou mais escuro, o certo é que não há uma receita única para um bom pingado, já que depende do gosto da pessoa ou da preferência do freguês.

Dentre as "categorias" de pingado, a preferida delas é certamente aquela servida não na xícara mas em um bom e clássico copo americano com o café preparado no coador de pano. Alguns preferem misturar o café no leite para "quebrar" a intensidade do café e tornar a bebida menos amarga e consequentemente mais docinha e suave.

E por que - muitos perguntam - o pingado passou a ser servido no copo Americano? A tradição vem, em parte, da questão da praticidade, da percepção da quantidade e do visual que a mistura apresenta. Além disso, o Americano é muito versátil, podendo ser usado para outras bebidas. E como tem uma medida padronizada, facilita para o pessoal do balcão dando uma noção de até onde se pode adicionar o leite e o café à bebida segundo o gosto de cada consumidor.

COPO AMERICANO: JÁ SETENTÃO, UM ÍCONE POPULAR 

Copo de todas as classes sociais, idades e de várias gerações de brasileiros, não por acaso o copo Americano está presente em padarias, bares e restaurantes e na maioria dos lares de todo o país, onde é usado até como padrão de medida. Nele bebe-se de tudo ou quase todo tipo de bebida, seja quente ou fria. Do cafezinho ao pingado. Da cervejinha à cachaça. Assim como a água guardada fresquinha em talha de barro colocada na pia da cozinha em grande parte dos lares brasileiros.

Apesar de ostentar "Americano" no nome, ele foi criado aqui mesmo pela indústria paulista há mais de 70 anos. Com ele mede-se farinha, açúcar, grãos, massas e, até, sabão em pó e soro caseiro. Sim, de recipiente despretensioso e versátil para sorver os mais variados líquidos acabou se tornando involuntariamente padrão volumétrico da culinária brasileira, assim como para tarefas domésticas e referência para a saúde pública do país.

Mais: em doses extras, teve multiplicada sua popularidade e prestígio em várias regiões como São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná, onde virou sinônimo de pingado - o clássico café com um "pingo" ou lance de leite, disputando com a média, o café com leite mesclado em proporções idênticas, a preferência em bares e padarias de norte a sul do Brasil.

Tal fama também não passou despercebida lá fora. Em 2009, o MoMA de Nova York classificou o copo de vidro da quase centenária Nadir Figueiredo de "símbolo do design brasileiro", em uma exposição que reuniu exemplares de várias partes do mundo.

Com 9 centímetros de altura, 6,5 de diâmetro e 175 ml de capacidade reunidos em um desenho que conjuga simplicidade, versatilidade e praticidade a um só tempo, o mais clássico e popular dos copos brasileiros, cuja trajetória se mistura com a memória afetiva, a cultura e a história do país nas últimas sete décadas, também é um campeão de vendas.

A linha que leva seu nome hoje tem diversos modelos e tamanhos. No auge dos seus 71 anos de vida, completados em 2018, ele já ultrapassa a impressionante contagem de 6,5 bilhões de unidades. Se caso fossem enfileiradas uma a uma, seria possível dar 12 voltas ao redor da terra. Pesadas todas elas, somariam 650 milhões de toneladas.

Atualmente saem das máquinas automatizadas da matriz na capital paulista, situada no bairro da Vila Maria, 420 de copos a cada minuto. Nos seus inícios eram produzidos manualmente apenas um par deles. Com produção contínua e ininterrupta, são feitos hoje diariamente cerca de 605 mil copos, nos quais são utilizadas 600 toneladas de vidro. A cada mês são cerca de 18 milhões de unidades - uma produção superlativa correspondente à população dos 39 municípios da região metropolitana de São Paulo, a maior do Brasil.
 
FÓRMULA DO SUCESSO: SIMPLES, BOM E BARATO


 - Arquivo - Arquivo

Mas todo esse gigantismo e longevidade do copo Americano teve origem nos já longínquos anos 40. Mais precisamente em 1947, quando Nadir Dias de Figueiredo, empreendedor de quatro costados e um dos idealizadores e fundadores da FIESP (Federação das Indústrias de São Paulo), teve a ideia de produzir copos de vidro no país, trazendo do exterior a mais avançada tecnologia à época. Originalmente, a empresa nasceu em 1912, no largo da Liberdade, região central de São Paulo, como uma oficina de consertos de máquinas de escrever e equipamentos elétricos.

Mas, já nos anos 1930, diante da falta de globos de vidro e outros itens de iluminação para repor seus estoques, desdobramento da crise de 1929 e da Revolução Constitucionalista paulista, o fundador decide enveredar pela produção vidraceira. Ao negócio, tempos depois, agrega o irmão Morvan, que conduz a seu lado outros projetos, como uma metalúrgica, cerâmica e uma seguradora.

Mas é a fábrica de vidro que acaba por determinar os rumos e o futuro da empresa. Hoje, a NF, presente em mais de 120 países, ocupa a posição de maior fabricante nacional no segmento, com várias linhas de copos, taças, pratos, xícaras, travessas refratárias (pirex), potes e garrafas.

Para chegar ao desenho do copo Americano, Figueiredo, de olho no crescimento do mercado de artigos em vidro destinados à alimentação, já na segunda metade da década de 40, se inspira em copos produzidos nos Estados Unidos e cria um modelo a partir das hábitos e necessidades à época dos brasileiros.

Rapidamente, a novidade cairia no gosto da população, incorporando-se à mesa e ao dia a dia das famílias em todo o país, turbinado ainda pela estratégia pioneira da NF de acondicionar geléias de frutas em embalagens de vidro. Touchée! Do ambiente doméstico para padarias, bares e restaurantes foi questão de tempo tal sucesso ser repetido.

A equação do copo "simples, bom e barato" amplamente aceito e fácil de repor, inaugurou, por exemplo, em vários pontos do país o reinado do pingado, hábito arraigado que resiste até hoje entre os brasileiros, apesar da força dos irresistíveis espressos italianos e da evolução e exigências atuais das novas gerações de consumidores.

Mais: transformou-se no "Santo Graal de vidro" para uma enorme legião de apreciadores de cerveja e cachaça (neste caso, usa-se tanto o clássico Americano ou o seu sucedâneo, o miniamericano ou "americaninho"). Na autodenominada capital brasileira dos botecos, Belo Horizonte, o copo sexagenário ganhou o apelido de Lagoinha, nome emprestado da região boêmia da cidade. O prestígio junto às mulheres, por sua vez, tem o pé na cozinha e não no botequim.

Para muita dona de casa país afora que aprendeu a cozinhar com a mãe ou a avó, os 175 ml do Americano serviram e servem até hoje como padrão de medida, substituindo balanças e objetos culinários afins. "E não só elas. Muitos chefs e cozinheiros por aí, como eu, lançaram mão dele em algum momento", observa o tarimbado chef paulistano Hamilton Mellão Júnior. "A grande culinarista Maria Stella Libanio, por exemplo, refere-se a ele em suas obras, nos anos 1970, como padrão volumétrico não oficial da culinária brasileira", ressalta. Uma trajetória notável deste ícone brasileiro.
 
 
(*) Marco Merguizzo é jornalista profissional especializado em gastronomia, vinhos, turismo e estilo de vida. Confira outras novidades no Instagram (@blog 1gole1garfada1viagem) ou clique aqui e vá direto para a página do blog no Facebook

PALAVRA DE CHEF

GLORIOSOS 175 ML

A unidade de medida no Brasil já foi a colher e o copo. Isso mesmo: colheres e copos desbancando quilos e litros
 
Por Hamilton Mellão Júnior (**)


O chef Hamilton Mellão Jr., do Mellão Trattoria de São Paulo: copo Americano virou medidor na cozinha profissional  - Arquivo O chef Hamilton Mellão Jr., do Mellão Trattoria de São Paulo: copo Americano virou medidor na cozinha profissional - Arquivo

"Comecei a cozinhar há mais de quarenta anos na chamada "cozinha quente" dos restaurantes, onde se fazem os pratos salgados, e as medidas dos ingredientes eram feitas com o que tínhamos à mão. Assim, uma medida disto colocada com mais meia medida daquilo e mais duas medidas do outro numa lata vazia, quando levadas ao fogo faziam o molho bechamel, iguaria quase onipresente nos pratos do cardápio.

Subvertíamos o sistema métrico decimal em unidades quaisquer que estivessem à mão. Como também era hábito naquela cozinha flambar tudo com conhaque, e quando digo tudo é tudo mesmo. As cozinhas pareciam o quarto círculo do inferno de Dante. E um singelo copo Americano ficava ao lado do profissional que, depois de executar a pirotecnia, tomava um talo do dito conhaque.

Já na "cozinha fria", a das sobremesas, era necessário certo rigor e a medida era um copo Americano. Sempre solerte, encostado num canto da bancada de trabalho, era ele que dava ao profissional a precisão de que ele precisava. Nada de quilo, litro, galão, quartilho. Era o copo americano marcando o rigor do manjar branco com ameixas ou de um bolo em camadas de abacaxi, figos e pêssegos em lata chamado singelamente de Bolo à Havaiana.

Nos livros de cozinha a medida era o copo americano, uma evolução tecnológica em relação ao prato do nosso proto receituário escrito. Não falo aqui do Cozinheiro Imperial (1840) ou do Cozinheiro Nacional (1874) ou do Doceiro Nacional (1876), que usavam pratos fundos como medidas e libras inglesas como peso.

Falo da Dona Benta, lançado em 1940, e que só tomou fôlego nas vendas em 1950. Presente em qualquer lar que em que houvesse pessoas que soubessem ler e tivessem dinheiro para compra, sendo que o último fator era mais preponderante - visto que tal aquisição representava objeto de status para uma dona de casa digna deste nome. Nas receitas, a medida eram copos, copos esses que, subentendidos, eram os copos da Nadir Figueiredo, o mesmo que a família tomava água na talha de barro da cozinha.

Na codificação da cozinha mineira feita nos seus diversos livros, entre as décadas de 1970 e 80, Maria Stella Libanio, certamente responsável pelos primeiros tratados publicados sobre cozinha regional brasileira e que eu tive o orgulho de prefaciar o relançamento, a unidade de medida é copo, copos para tudo, evidenciando que esse era o padrão de medida brasileiro, isso mesmo, copos e colheres desbancado quilos e litros.

Por certo, a Nadir Figueiredo ao lançar seu copo Americano há 71 anos não tinha ideia de que, independentemente de todos os usos que se fizesse dele, seria o padrão volumétrico não oficial da culinária brasileira. Gloriosos 175 ml."
 
(**) Hamilton Mellão Júnior é chef de cozinha do restaurante Mello & Mellão Trattoria, em São Paulo, e autor do livro Bistrô x Trattoria, Comidas da Alma