1 gole, 1 garfada, 1 viagem

Produzido nos arredores de Verona, no Vêneto, palco do romance de Romeu e Julieta, o Amarone é um caso de amor ao primeiro gole


POR MARCO MERGUIZZO (*)

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Na véspera do dia dos namorados, que acontece nesta terça-feira, 12, e a apenas três dias da abertura da Copa do Mundo de Futebol, cujo início ocorre na quinta, 14, também uma outra "paixão" do brasileiro - a data é mais do que perfeita para desarolhar um vinho e brindar a união, surpreendendo o (a) parceiro (a) com um jantarzinho romântico a dois.
 
Aliás, no universo das taças, histórias de paixões é que não faltam. Se as enumerasse uma a uma, precisaria escrever um livro e não um simples post. A começar por quem produz a bebida. Um trabalho que exige conhecimento, esforço e aperfeiçoamento contínuos, além de doses extras de pura paixão.
 
Porém, uma história de amor que nos vem à mente de modo recorrente é a tragédia imortalizada na literatura universal por William Shalespeare (1564-1616) através do romance de Romeu e Julieta, o clássico mais famoso do dramaturgo e poeta inglês ao lado de Hamlet, outra de suas obras-primas.   
 
Pois bem: é nos arredores da cenográfica cidade medieval de Verona - um dos berços do Renascimento e palco da trágica e romântica história dos jovens Capuleto e Montecchio - que é produzido um dos vinhos mais famosos da Itália: o Amarone. De caráter e paladar únicos, este gigante da taça é a expressão máxima da denominação de origem de Valpolicella na região do Vêneto, situada no Nordeste italiano, e um dos mais reverenciados rótulos do mundo.
 
A partir de um processo milenar de vinificação de três variedades de uva regionais - originalmente a Corvina, a Rondinella e a Molinara -cultivadas em um terroir esquadrinhado por suaves colinas de vinhedos ao norte daquela cidade peninsular que este tinto singular de enorme prestígio, dentro e fora da Itália, é moldado há séculos. 

Embora ostente, curiosamente, quase o mesmo radical da palavra "amore" (ou amor, em italiano), a origem do nome Amarone provém do termo "amaro" (ou amargo) que é, não sem razão, uma de suas principais peculiaridades enológicas. Seja como for, o Amarone é um vinho superlativo que desperta paixões ao primeiro gole, revelando o lado apaixonado do Vêneto e sua alma inegavelmente italiana.

Sabe-se que o Amarone della Valpolicella é a evolução do Recioto, que figura entre os mais antigos exemplares da história do vinho. No século IV d.C., Cassiodoro, o ministro de Teodorico, rei dos visigodos, descreveu em uma carta ao imperador um vinho chamado Acinatico, feito com uma técnica especial de secagem das uvas e produzido na região conhecida como Valpolicella. (Em tempo: esta denominação provém da conjunção em latim vallis-pollis-cellae, que significa "vale de muitas vinícolas").


Nos arredores da cenográfica Verona, palco do trágico amor dos jovens Capuleto e Montecchio, é que nasce o Amarone - Arquivo Nos arredores da cenográfica Verona, palco do trágico amor dos jovens Capuleto e Montecchio, é que nasce o Amarone - Arquivo

O Acinatico é, portanto, segundo historiadores e espeleólogos, o ancestral do Recioto e do Amarone. Antigamente, produzia-se apenas o Recioto em Valpolicella, um vinho doce e aveludado cujo nome deriva da palavra "reece", que no dialeto local significa "orelha", já que eram usadas apenas as uvas mais altas da vinha e com melhor exposição ao sol.
 
 
Com o passar do tempo e as mudanças das estações do ano, as uvas, embora fossem trabalhadas da mesma maneira, davam vida (após a fermentação) a um vinho consideravelmente mais seco que o original. Se num primeiro momento esta transformação podia ser um problema, este Recioto mais seco e, consequentemente mais amargo, prevaleceu facilmente ao doce e tornou-se cada vez mais apreciado e solicitado. 

Nascia assim o Amarone (da palavra italiana amaro ou amargo em bom português). Antes raros e valiosos, por terem uma produção familiar e local, os primeiros rótulos começaram a ser engarrafados só no início do século passado.

A seguir, ficariam populares após II GG até se tornarem uma D.O.C. em 1968. Com altos e baixos em matéria de qualidade, nas décadas seguintes, alguns Amarones perderam sua excelência devido à produção desordenada, que visava apenas suprir a demanda do mercado, comprometendo assim sua mística.

Felizmente, as melhores e mais importantes vinícolas reagiram e se uniram para modificar as regras de produção, passando a controlá-las mais rigidamente e a zelar pela qualidade através de um atuante conzorcio de produtores.

AMARONE: UMA SABOROSA EXCEÇÃO ENOLÓGICA 


Produzido desde o século IV, o Amarone figura entre os rótulos mais antigos da história do vinho - Arquivo Produzido desde o século IV, o Amarone figura entre os rótulos mais antigos da história do vinho - Arquivo

Se por um lado o método tradicional de produção de vinhos prioriza a expressão do terroir e da fruta com a mínima interferência possível no cultivo, fermentação e guarda, por outro, há aquelas exceções que resultam em vinhos magníficos, quando as técnicas de produção incluem a interferência decisiva do produtor ou do enólogo durante o processo de vinificação e no resultado final do caldo. 

Neste último, é o caso tanto do Amarone quanto do Champagne: os dois mais emblemáticos exemplares do mundo do vinho e não por acaso denominados de "vinhos de processo". Elaborado a partir das castas regionais Corvina, Rondinella e Molinara, o mais cultuado vinho do Vêneto tem, portanto, uma produção peculiar e ancestral.

As uvas passam pelo processo de apassimento (ou passificação), que é a secagem natural dos bagos em soleiras chamadas de "frutaios", durante 4 meses, e cujos frutos perdem de 40% a 50% do volume de água, mas ganham em concentração de nutrientes e açúcar, convertendo-se em um vinho de elevado teor alcoólico (em média de 14º para 17º).

Tal técnica remonta ao tempo dos antigos romanos. Não são usadas "uvas passas", e sim aquelas levemente passadas do ponto de maturação. O resultado é um mosto bem mais concentrado e complexo, com grande quantidade de polifenóis e resveratrol, as substâncias antioxidantes do vinho. Em seguida, o caldo estagia em enormes barricas de carvalho esloveno e francês, seguido do amadurecimento em garrafa.

Um Amarone feito de acordo com essas regras não levará menos do que três anos para ficar pronto. Ao final do processo se tornará uma bebida de paladar incomparável, única em seu estilo, capaz de despertar paixões mas, também, causar estranhamentos, já que é um vinho intrinsicamente encorpado, alcoólico e intenso.

PROVÁ-LO É UMA EXPERIÊNCIA SEMPRE MARCANTE 


Um gigante na taça, o Amarone revela o lado apaixonado do Vêneto e toda a sua alma italiana - Arquivo Um gigante na taça, o Amarone revela o lado apaixonado do Vêneto e toda a sua alma italiana - Arquivo

Para um enófilo beber um Amarone é sempre uma experiência marcante, que provoca os sentidos em direções opostas: o vinho é seco, mas com um fundo adocicado da uva passificada, é alcoólico (não pode ter menos do que 14%) e com pouco tanino, porém tem um travo de amargor final que lhe dá frescor. Tem aromas poderosos de frutas maduras e de especiarias e, quando feito por um produtor sério, é aveludado, longo, encorpado e rico.

É um desses vinhos que se destacam e são facilmente reconhecíveis para quem o bebeu apenas algumas vezes. Um Amarone envelhece muito bem devido à sua estrutura complexa, mas também podem ser feitos em estilo mais moderno, de consumo mais rápido. No entanto, jamais serão vinhos óbvios, simples, para o dia-a-dia. São, na verdade, o lado mais intenso e profundo do Vêneto, uma região elegante, culta e discreta mas cheia de sutilezas

SINFONIA DE AROMAS NA TAÇA 

 

Cena de Romeu e Julieta, filme de 1968 de Franco Zeffirelli: como o clássico de Shakespeare o Amarone desperta paixões - Arquivo Cena de Romeu e Julieta, filme de 1968 de Franco Zeffirelli: como o clássico de Shakespeare o Amarone desperta paixões - Arquivo

Em seu estilo, portanto, o Amarone é bastante encorpado, intenso tanto nos perfumes quanto nos sabores. E alcoólico. Tão alcoólico que, embora seco, dá a impressão de uma certa doçura. Normalmente, possui uma boa complexidade aromática com florais (violeta e outras flores vermelhas, às vezes flores secas), frutas (frescas, passas e cristalizadas), frutas secas (avelãs, nozes e amêndoas) e um toque típico de oxidação.

Com os anos de garrafa desenvolvem-se matizes de especiarias (canela, noz-moscada), além de couro, tabaco, tartufo e outras notas de evolução. No palato, os taninos são educados pelos anos de madeira. O álcool se faz presente nos melhores exemplares com harmonia e noutros se sobrepondo.

Um característico toque amargo pode aparecer no fim de boca. Pode-se beber um Amarone jovem, com 4 a 5 anos de idade. Nada impede, entretanto, que uma garrafa repouse na adega até 20 anos. Alguns exemplares de boas safras e bons produtores vivem até mais. Para servir um Amarone é obrigatório que o líquido passe ao menos uma hora respirando numa jarra ou decanter.
 
DICAS DE HARMONIZAÇÃO E DE RÓTULOS CAMPEÕES


Produzido na região de Parma, o parmesão faz par perfeito com este supertinto do Vêneto - Arquivo Produzido na região de Parma, o parmesão faz par perfeito com este supertinto do Vêneto - Arquivo

Um Amarone de estirpe exibe em suas melhores safras uma variedade de aromas e sabores de riqueza ímpar que evoca frutas negras maduras e em geleia, doce de ameixa, uva passa e cristalizada, pétalas de rosas e um toque de oxidação, resina e taninos marcantes. Além da força, peso e vigor, o Amarone oferece untuosidade e estrutura para acompanhar carnes de caça e queijos potentes como os azuis gorgonzola e roquefort e o parmesão parmigiano-reggiano, de massa dura e maturada.

Referência mais do que certeira o Amarone della Valpolicella Classico 2003 é um exemplar grandioso. Classificado com tree bicchieri pelo guia italiano Gambero Rosso, é uma obra-prima moldada pelo icônico produtor italiano Giuseppe Quintarelli.

Elaborado com rendimentos minúsculos e maturado sete anos em "botti" de carvalho esloveno, combina uma imensa concentração de fruta e enorme elegância, marca registrada deste produtor. O Amarone della Valpolicella Classico 2012, da tradicional família Speri, hoje na quinta geração, também é outro vinho monumental. Ambos são importados pela Mistral de São Paulo (mistral.com.br).

Também são recomendações campeãs os estupendos Masi Riserva di Costasera Amarone della Valpolicella Classico 2011, hoje uma das principais estrelas do portfólio da importadora Epice (epice.com.br) e Allegrini Amarone della Valpolicella D.O.C. Classico 2009, este último moldado por um dos mais conhecidos e premiados produtores do Vêneto, cujo clã familiar produz Valpolicellas e Amarones desde o século 16. Importação exclusiva da Inovini (inovini.com.br).


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(*) Marco Merguizzo é jornalista profissional especializado em gastronomia, vinhos, turismo e estilo de vida. Confira outras novidades no Instagram (@blog 1gole1garfada1viagem) ou clique aqui e vá direto para a página do blog no Facebook.