1 gole, 1 garfada, 1 viagem

E vai rolar a festa: "prato verde-amarelo", a feijoada é receita certa antes do Brasil estrear na Copa do Mundo neste domingo, 17/6


POR MARCO MERGUIZZO (*)

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No panelão fumegante, pé, orelha, língua, rabo e outras partes do porco cozinham e recozinham pacientemente, horas a fio, junto com o feijão-preto. Da alquimia, cuja tradição mais fiel manda perpetrá-la no fogão de lenha, nasce um caldo negro, vigoroso, cujo contraponto perfeito é a farofa seca, o arroz soltinho, a couve refogada al dente e a laranja descascada sem pele e cortadinha em lâminas bem finas.

Escolta imprescindível, a caipirinha (confira o post sobre este apreciado drinque que, como o futebol, virou símbolo do Brasil lá fora, clicando aqui), feita com uma boa pinga de alambique, de preferência, é o seu par gastronômico ideal, ao atiçar o paladar com seu teor alcoólico potente e, durante a inescapável comilança, contrabalançando a gordura das carnes com a acidez instigante do limão.

No placar das preferências do brasileiro à mesa e de todas as torcidas do país, o hábito de saborear nosso prato mais típico e famoso se estende do Oiapoque ao Chuí. Mas não só aqui. No exterior, a feijoada virou ícone da nossa culinária ao lado do churrasco à moda do Brasil ou o "Brazilian barbecue", como ele é conhecido nos Estados Unidos e em vários países, com quem divide por sinal as honras de prato nacional número um.
 
Dica certeira, portanto, para devorá-la neste sábado cinzento de baixas temperaturas em Sorocaba e região, ou prepará-la em casa, amanhã, 17 de junho, em pleno domingão, e curti-la em família antes da partida de estreia do Brasil na Copa do Mundo contra a Suíça, que acontece às 15h, na cidade de Rostov, na Rússia.
 
A ORIGEM CARIOCA DO PRATO QUE VIROU SÍMBOLO DO BRASIL À MESA
 
No Rio de Janeiro, por exemplo - comprovadamente a sua verdadeira origem histórica -, o consumo da feijoada é tão arraigado que a servem em pleno verão tanto quanto a pimenta que a acompanha. Diferentemente, porém, do Rio Grande do Sul, onde é prato de inverno. Ou, por aqui, em qualquer estação do ano, nos restaurantes sorocabanos e de outros municípios vizinhos, onde é possível prová-la tradicionalmente às quartas-feiras e, sobretudo, aos sábados. 

Receita de consumo e preparo longo e coletivo, trabalhoso e esmerado, cuja atmosfera festiva reúne familiares e amigos em torno da mesa - a feijoada contrasta com o feijão do dia a dia. Verbetes de dicionários e livros de cozinha difundem amplamente a crença de que o prato teria nascido na senzala com os escravos, entre os períodos da Colônia e o Império, a partir do cozimento dos "restos" do porco, com as partes "desprezadas" pelos senhores de engenhos-de-açúcar, fazendeiros das minas de ouro e barões do café - mais água e feijão.

Nada mais errado. A versão não passa de lenda contemporânea baseada em visão romanceada das relações sociais e culturais da escravidão no país. Quando os portugueses colonizaram o Brasil, trouxeram receitas que formaram a base da nossa cozinha. Algumas tinham como matéria-prima justamente orelha, focinho, rabo e língua do porco - à época, verdadeiras iguarias gastronômicas e, ao contrário do que se acredita hoje, jamais consideradas restos.


A Casa-Grande foi o berço da feijoada, uma herança europeia, ao contrário da tese de que ela teria nascido na senzala  - Arquivo A Casa-Grande foi o berço da feijoada, uma herança europeia, ao contrário da tese de que ela teria nascido na senzala - Arquivo

Além disso, a barbárie a que os escravos eram submetidos se estendia à cozinha. No dia-a-dia da senzala, comia-se basicamente farinha de milho ou mandioca, feita com água. Os alimentos se resumiam ao mínimo necessário para eles não enfraquecerem e continuarem aptos ao trabalho.

Os senhores deixavam que entrassem no pomar, mas não faziam isso por bondade. Os escravos precisavam comer laranja para evitar o escorbuto, doença hemorrágica causada pela carência de vitamina C. Quando havia feijão, era sempre magro e pobre. Este, sim, poderia ser considerado resto da Casa-Grande. De modo geral, só em ocasiões especiais, como na colheita, eles recebiam pedaços de charque ou carne fresca.

CASSOULET FRANCÊS E COZIDO LUSITANO: AS INSPIRAÇÕES DA FEIJOADA

Foi provavelmente Guilherme Figueiredo, no livro "Comidas Meu Santo", de 1964, o primeiro a escrever que a feijoada não tinha um pé na senzala. Para ele, a receita seria uma "degeneração" do cassoulet francês - preparado com feijão branco, carnes de vaca, carneiro, ganso, pato ou galinha, linguiça, cebola, tomate, alho e temperos - e também do cozido lusitano, que ele chama equivocadamente de "caldeirada". Mais recentemente, no livro "A Saga da Comida", de 2000, o sociólogo Gabriel Bolaffi, da Universidade de São Paulo (USP), sustenta que a tese de que os escravos eram alimentados com um prato rico e vigoroso não passa de mito.

"Em fazendas que tinham algumas centenas de escravos, imagine quanto lombo e quantos pernis a Casa-Grande teria de consumir para que duas orelhas, quatro patas, um focinho e um rabo alimentassem um grande número de negros", escreveu.

Ao que tudo indica, a receita de feijoada como a conhecemos hoje surgiu no Rio de Janeiro, na segunda metade do século 19. Pratos assemelhados à ela mundo afora por certo serviram de fonte inspiradora para a versão tropicalizada que aqui se desenvolveu ao longo do tempo.

Caso do cassoulet francês, pela forte presença da cultura francesa à época. Dos cozidos português e madrilenho. E da cassoeula milanesa, prato italiano de tradição lombarda. A feijoada seria, portanto, descendente dessa linhagem de pratos vigorosos e de personalidade mais calórica.

O escritor, poeta e memorialista Pedro Nava (1903-1984), em seu livro "Baú de Ossos - Chão de Ferro", de 1976, aponta para o restaurante carioca G. Lobo, que funcionava no número 135 da rua General Câmara, no centro da capital fluminense, o primeiro estabelecimento a oferecer a iguaria. Fundada no fim do século 19, a casa desapareceu com a construção da avenida Presidente Vargas, nos anos de 1940.


O cassoulet francês: uma das inspirações da feijoada brasileira, que virou o prato-simbolo do país no exterior - Arquivo O cassoulet francês: uma das inspirações da feijoada brasileira, que virou o prato-simbolo do país no exterior - Arquivo

A RECEITA ORIGINAL E SUAS VARIAÇÕES CONTEMPORÂNEAS


A contribuição do Rio de Janeiro como berço da feijoada é inegável, sobretudo na presença do feijão-preto, outra predileção carioca. Revista, ampliada e enriquecida em todos os lugares em que aterrissou e passou a ser reproduzida, a feijoada deixou de ser exclusivamente uma mera receita culinária para se tornar uma refeição e um programa completos. Dia de feijoada em casa, sabe-se, é dia de festa.

Para muitos, ela é tão sagrada que nos almoços de quartas e sábados não se pede outra coisa. Por tudo isto, receita de feijoada é um problema. Cada um tem a sua. Uns colocam de tudo - lombo, orelha, pé, linguiça, rabo, paio, carne seca, costelinha, língua e bacon -, e até exageram na quantidade dos ingredientes preferidos.

Outros, seguindo a "onda light", se arriscam menos na balança e eliminam as carnes gordas. Há, também, a chamada "feijoada vegetariana", em que aos legumes e às verduras acrescentam-se as chamadas carnes vegetais (feitas de soja e sem glúten) em substituição aos cortes suínos - alternativa aos adeptos dessa linha alimentar, em que até pescados tomam o lugar de protagonistas do expurgado porquinho, rico em gordura (a boa) animal.

De todo modo, é certo que a tradicional feijoada é calórica, sim, independentemente da quantidade consumida. O que não chega a ser um defeito, já que os alimentos servem para atribuir calorias e nutrientes. Além do que cientificamente está provado que se não houver gordura, a comida fica insossa, sem personalidade e alma, concorda?

Para quem a iguaria representa uma verdadeira bomba calórica ou um "tsunami" ao colesterol, há diversas variações e opções, algumas mais, outras menos calóricas, algumas mais, outras menos ricas em fibras - para todos os gostos e bolsos. Mas o que importa mesmo é que a feijoada, rica em nutrientes e, principalmente, em sabores, histórias e tradições regionais, continua a ser o mais típico, democrático e festejado prato brasileiro. Vai Brasil!

FEIJOADA: A RECEITA EM DEZ PASSOS 
 

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1. Para fazer em casa, compre ingredientes de boa procedência e qualidade. 

2. Escolha e lave bem o feijão e as carnes salgadas. Coloque-os de molho: os feijões, de um dia para o outro. As carnes, por 48 horas, ou mais.

3. Leve o feijão ao fogo, com a água que ficou de molho, deixe levantar a fervura e escorra-o, descartando a água.

4. Troque a água das carnes que ficaram de molho, levante uma fervura e escorra fora a água.

5. Pique todos os temperos e depois triture-os, misturando-lhes a pinga.

6. Junte os temperos ao feijão e deixe-o marinando durante quatro horas.

7. Leve o feijão ao fogo, adicionando, primeiro as carnes mais duras. Junte bastante água e cozinhe até ficar macio. Introduza por último as carnes mais tenras, como a língua, o lombo, o paio, e as linguiças. Pingue água fria durante o cozimento, se o feijão começar a secar.

8. Quando o feijão já estiver cozido, retire as carnes e corte-as em pedaços regulares.

9. Troque o feijão de panela e junte as carnes cortadas. Para realçar o sabor, refogue cebola, alho, cebolinha, louro e bacon bem frito, mais um pouco de pinga e suco de laranja, misture ao feijão - e ajuste o sal.

10. Coloque a panela no forno quente, pré-aquecido, para o feijão gratinar, formando assim uma fina película na superfície. Na hora de levar à mesa, separe as carnes do feijão e sirva com os acompanhamentos.

FEIJOADA COMPLETA
(15 pessoas)


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INGREDIENTES

PARA O FEIJÃO E AS CARNES


2,5 kg de feijão-preto, 1 kg de carne seca, 250 g de orelha de porco salgada, 250 g de rabo de porco salgado, 250 g de pé de porco salgado, 1 kg de costelinhas de porco, 250 g de língua defumada, 250 g de lombo de porco defumado, 0,5 kg de paio, 0,5 kg de linguiça portuguesa e 0,5 kg de linguiça de lombo.

PARA OS TEMPEROS

2 talos de salsão, 1 cebola, 5 talos grandes de cebolinha verde, 4 ramos de coentro, 3 folhas de louro, 5 dentes de alho, 1 folha de escarola, 1 colher (sopa) de orégano, ¼ colher (sopa) de pimenta-do-reino, 250 g de bacon picado e frito, 1 laranja pequena com casca, 100 ml de pinga, sal a gosto.

PARA O REFOGADO FINAL

50 g de bacon bem picado, 1/2 cebola bem picada, 1 dente de alho bem picado, 2 talos de cebolinha verde bem picada, 1 folha de louro, 25 ml de pinga, 25 ml de suco de laranja.

ACOMPANHAMENTOS

Arroz branco, couve cortada, frita e temperada com bacon e alho, torresmo, laranjas descascadas e cortadas em fatias, bistequinhas de porco grelhadas, pimentas, farofa seca, farinha de mandioca crua e torrada e puxada na manteiga.

CAIPIRINHA: A BREGA QUE VIROU CHIQUE


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Da singela e sábia mistura da cachaça com limão, açúcar e gelo nasceu há mais de meio-século a Caipirinha. Por muito tempo, seu consumo esteve associado à gente simples do interior (daí a origem do seu nome) e às classes sociais menos favorecidas, em razão do baixo custo de seus ingredientes. A simplicidade da receita favoreceu sua popularização e ascensão social até chegar ao status atual de o mais conhecido coquetel do universo - espécie de sinônimo do Brasil lá fora.

Sim, aquela que um dia foi brega, desde 1996 integra a seleta lista dos 62 exclusivos coquetéis oficiais do mundo - ao lado de clássicos como o Dry Martini, o Bellini e a Marguerita. Com o aval e as benções da International Bartenders Association, sua receita passou a ser respeitada no mundo dos profissionais do balcão e eternizada entre os consumidores.

Não há, porém, registro sobre onde exatamente a primeira Caipirinha foi preparada. Acredita-se que tenha nascido entre os trabalhadores rurais da região Noroeste de São Paulo, onde a produção de limão sempre foi farta. Essa origem interiorana, e caipira, explicaria o seu nome de batismo. Usado como remédio contra a gripe, o limão sempre teve, popularmente, por causa da acidez, uma função medicinal. A Caipirinha seria, sob essa visão, uma variação da beberagem à base de limão-galego, mel e alho, bastante popular no interior. Sabe-se, no entanto, que o drinque, como o conhecemos hoje, começou a ser popularizado a partir dos anos 50.

O sucesso da Caipirinha, de todo modo, se deve acima de tudo ao uso de ingredientes que se completam em perfeita união, sem que um predomine sobre os demais. A cachaça artesanal é ingrediente obrigatório e deve ser, sempre, da branquinha. A ela se completam, harmoniosamente, o limão, o gelo e o açúcar, que pode ser substituído por adoçante.

Mas o uso não deve ser exagerado, porque sua função é apenas cortar a acidez do limão. Em torno dessa base, é possível improvisar. Foi assim que nasceram variações que hoje fazem sucesso entre os consumidores. Caso da Caipirosca, em que a vodca substitui a cachaça, da Caipiríssima, feita com rum, e da Saquerinha (caipirinha de saquê), inventada nos anos 70 e revalorizada na segunda metade dos anos 90.

Os franceses substituíram a pinga pelo cointreau - o licor de laranja e de ervas aromáticas. Desde que a Caipirinha ganhou fama, combinações audaciosas desafiam a sua supremacia. Por conta da grande oferta de frutas exóticas, bem como de modismos de estação, admite-se a troca do limão por morangos, framboesas, lima-da-pérsia, kiwi e lichias.

Mas a verdade é que, apesar da aprovação às variações, a boa e velha caipirinha de limão acabou consolidando ainda mais seu prestígio em relação às suas eventuais concorrentes. Afinal, clássicos são clássicos. 

Vai pra cima deles, Brasil! A feijoada, a caipirinha e o caneco são nossos!
 
 
(*) Marco Merguizzo é jornalista profissional especiliazado em gastronomia, vinhos, turismo e estilo de vida. Confira outras novidades no Instagram (@blog1gole1garfada1viage) ou clique aqui e vá direto para a página do blog no Facebook.